23 de junho de 1793

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Querido diário,

Por qual notícia ruim começo...?

Tudo já não vinha bem e podia certamente piorar.

Violaram minha privacidade e esse diário foi lido. Eu achei que o tinha escondido direito. Não há canto onde um marido enciumado não consiga fuçar.

Antoine não conversava comigo apesar de todas as oportunidades que lhe ofereci.

Esperou algum tempo para tomar a mais extrema das atitudes, invadindo meus aposentos quando eu estava longe e vasculhando tudo até encontrar...

Meus escritos. Meus sentimentos mais íntimos. Meu breve namorado cigano.

Que agora é passado. Essa informação não aplacaria seu ciúme.

Me deparei com essa desgraça em flagrante mesmo, ao entrar em meu quarto para pegar qualquer coisa e notar já uma segunda presença.

Estranhei, porque ele vinha fingindo que eu não existia e de repente estava ali, sentado em minha cama, lendo algo.

- Meu bem...? - chamei cautelosa.

A reação foi brusca e me fez pular. Sem dúvida eu nunca o tinha visto agir assim antes.

Atirou o pequeno caderno no chão, próximo de mim, com um ruído alto. Cobriu o rosto com as mãos, inconsolável.

- Antoine...? Antoine! - exclamei seu nome ao entender, enfim, o que estava acontecendo.

Como ele conseguiu encontrar? Aquele diário ficava no fundo falso do armário cuja existência descobri mexendo um dia e pensei ser o esconderijo perfeito.

Peguei meu diário do chão e por um segundo folheei para ver se estava intacto depois da violência.

Sim. Meus segredos pareciam intactos fisicamente. Agora já não eram secretos.

Eu podia ver em meu pobre marido. Mal consegui ter tanta raiva dele porque sua aparência estava péssima, quase desfigurada. Muito pálido exceto por olheiras avermelhadas e agora chorava, compulsivo e rancoroso.

Deixando os preciosos registros sobre a escrivaninha em um gesto rápido, sentei ao seu lado e estendi uma mão hesitante.

Estava tão abalado que já não resistiu, entregando-se ao meu abraço como uma criança.

Eu sentia um misto de alívio, medo e dor em poder acolhê-lo dessa forma depois de tanto tempo.

- Antoine? - repeti outra vez, embasbacada. Palavras me fugiam.

- Você não me ama. Você não me ama. Eu sabia. - soluçou ele finalmente.

Aquilo me doía tanto.

Eu não o amava como ele esperava de mim, era fato. Esperava um pouco demais. Ainda assim, se eu não sentia nada por ele, então por quê...?

- Amo sim! - retruquei indignada. - Amo sim. Por que mais eu sofreria tanto com a maneira como você me trata? Com a forma como um belo dia revogou seu afeto e me deixou abandonada nesse lugar horrível, hostil, impiedoso? Eu amo você, Antoine.

Sua cabeça desolada estava em meu colo e seus olhos fixaram-se em mim, vazios.

- Não me ama como o amava. - murmurou. - Eu a tocava e o tempo todo, você na verdade o queria.

Respirei fundo. Lágrimas marejavam meus próprios olhos.

- Não sei se aquilo era amor. - esclareci. - Pode ter sido minha solidão, ou a forma como ele me seduziu assim rápido. Por pouco não me arruinou. De qualquer maneira é passado. Passado, Antoine. Um erro.

Antes que eu pudesse emendar: "me perdoe...", algo ainda mais chocante aconteceu.

Meu marido levantou de sua inércia em meu colo e começou a passar mal na minha frente.

Não foi sequer uma náusea ou tosse comum, não... Foi terrível, inexplicável.

Contorceu-se em dor, não conseguia respirar. Chamei-o outra vez quase gritando.

Meus gritos aumentaram e tornaram-se histéricos, apavorados, clamando por ajuda enquanto Antoine expelia muito sangue como algum tipo de tuberculoso, cobrindo meus lençóis de vermelho.

Não havia nada que eu pudesse fazer.

Depois de quase se esvair em sangue, tombou inconsciente para o lado, pálido como um cadáver.

Desmaiei também. Não que eu desmaiasse com frequência como donzela indefesa. Aquilo era demais para qualquer um aguentar.

Alguém ouviu meus gritos e encontrou aquela cena desconcertante.

Senti bem vago enquanto me erguiam e me acomodavam em outro lugar.

Voltei a mim com minha criada mais próxima, Claire, pacientemente umedecendo minha testa com um lenço.

- Claire...? - chamei atordoada, acometida por forte dor de cabeça e um pouco de vertigem.

- Não... Fique aí, senhora, descanse. Está tudo bem. - conteve-me com mão gentil.

- Não está tudo bem. - afirmei nervosa, ainda fraca. - Não está. Antoine.

Lágrimas torrenciais começaram a lavar meu rosto.

- Sim... - concordou a moça em ar triste. Então, garantindo antes que eu estivesse tranquila o suficiente para ouvir, me atualizou.

Antoine estava muito doente, é verdade.

Assim tão súbito. O médico da família, chamado às pressas, opinou que talvez sua inesperada mudança de humor já fosse indício do que quer que o acometeu.

Não possuem diagnóstico certo. Seria tuberculose mesmo?

Nem tuberculose é tão rápida ou devastadora. Isso é dizer muito.

Claire encerrou sua explicação em voz doce e senti que ainda omitia algo.

Algum detalhe que imaginava poder ser demais para minha própria saúde.

Eu permiti. Tinha ouvido o bastante, de fato.

Porém, ao longo dos próximos dias, quando logo me reergui da cama, e meu marido não... Terminei descobrindo.

É cruel, diário. Não faz sentido.

Talvez Antoine, aquele rapaz feliz, cheio de vida, de saúde perfeita até onde podíamos ver... Talvez ele morra.

E eu me torne a viúva mais jovem, mais perplexa e destruída em um raio de 1000 quilômetros.

Rezo com todas as minhas forças.

O médico opera com todos os seus conhecimentos e determinação, sob a pressão de meus sogros, dispostos a entregar qualquer fortuna para salvar o filho.

Pode não ser suficiente.

Por que, Deus, por quê?

Não suporto me prolongar muito mais do que isso.

Cordialmente,

Marie.

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