24 de agosto de 1793

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Querido diário,

Cheguei ao destino mais ou menos na metade do terceiro dia de viagem. Eu já não suportava ser levada como uma carga das menos valiosas naquele isolamento abafado. Mesmo assim, por saber como seria o que me aguardava, preferiria continuar lá dentro.

A porta se abriu, me assustando do estupor que eu estava. O período me alimentando apenas de restos semi-apodrecidos começava a me enfraquecer.

- Venha, amante de cigano. Vamos amarrá-la. - anunciou a voz dura do líder dos guardas.

Aquilo era para ser uma ofensa? Senti vontade de corrigir: a cicatriz em meu dedo indicador era registro de uma esposa de cigano.

Não queria ter diálogo algum com eles. Não queria chorar, espernear. Encontraria meu fim altiva e muda como um velho carvalho.

Não adiantaria resistir. Nesse caso, era provável que eu fosse arrastada para fora na base de socos.

Me levantei, erguendo as pernas enrijecidas com um pouco de dificuldade e tive minhas mãos outra vez amarradas em nó apertado atrás das costas.

Meus olhos tentavam se adaptar à súbita luz depois de tanto tempo na penumbra. Uma tarde pacífica, com a monotonia idílica rompida pela execução em praça pública de uma mulher inocente.

Inocente...

Será que alguém iria me ouvir se eu dissesse essa palavra? Poderia tentar uma última vez.

- Terei algum tipo de defesa? - questionei antes de me enfiarem um saco na cabeça. A resposta foi um riso cruel.

De novo no escuro, me guiaram bruscamente até não sei onde. Podia ouvir sons de multidão e o segundo guarda, um pouco mais afável, me disse para tomar cuidado com os degraus. Um palanque.

Ligando os elementos, não me surpreendi quando retiraram o saco.

Ao menos era direto. Eu desembarquei, dei alguns passos e estava pronta para ser morta.

Respirei fundo. Evitei olhar para a multidão. Era provável que visse algum conhecido se encarasse por tempo demais.

Meu foco logo se desviou para um alto instrumento de ferro e madeira... Uma guilhotina.

Eu tinha ouvido falar. Nunca achei que veria uma pessoalmente.

Conhecia até a história. Um inventor e médico a criou como forma mais limpa, democrática e rápida de decapitar todo tipo de prisioneiros, de reis a delinquentes.

Seus objetivos eram misericordiosos na medida do possível. Era irônico ver um pouco de misericórdia apenas no instrumento que me ceifaria, afiado, a vida.

Um largo balde estava ali para receber minha cabeça avulsa como se fosse um melão maduro.

O sonho não passou de um sonho.

Não havia saída.

Quando me guiaram até a guilhotina, o público pôde me ver melhor. Eu ainda vestia trajes de dormir, como quem foi surpreendida à noite. Estava praticamente nua e meu corpo ficava bem visível, incluindo o leve calombo do início de gestação.

Pude distinguir comentários sobre isso. Alguns expectadores hesitavam. Os gritos de: "Bruxa assassina!" eram mais altos.

Esses idiotas acreditam em bruxaria?, indagou uma voz no fundo da minha mente entorpecida de pânico.

Percebi como eu também acreditava. Dias antes, madame Lydia me chamou de bruxa, em tom de elogio.

Eu mantinha a cabeça baixa por escolha e mal olhei para o carrasco encapuzado, alto e solene.

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