Querido prisioneiro,
Ontem, depois de comer o que podia do pão mofado e beber um pouco do leite azedando que me ofereceram por uma brecha na porta trancada, fui dormir. Assim esqueço algo da solidão e da fome.
Criei uma barreira com o feno, buscando com que os ratos me perturbassem menos. Estavam ocupados de roer o resto do pão.
E tive um sonho...
Um estranho sonho, pois eu me sentia bem desperta, embora não pudesse me mover. Todos os meus membros paralisados, exceto as pupilas, que me permitiam enxergar um pouco ao redor.
Uma ofuscante luz dourada entrou pela porta da prisão sem abri-la. Aproximou-se até onde eu estava.
Eu poderia ter sentido medo... Uma paz estranha me preenchia. Era cedo para morrer de inanição. Seria essa a sensação da morte?
O clarão tomou forma... Forma de pessoa, de uma mulher. Com sua pele escura, traços fortes e longas mechas cor de ébano, parecia uma cigana. Os ciganos que conheci não brilham daquela forma, em particular em torno da cabeça, como uma auréola. Vestia um manto azul e dourado.
Mesmo que eu nunca a tivesse visto, ela me contemplava com o afeto de uma velha amiga. Ajoelhou-se ao meu lado e tocou minha testa, meu coração e meu ventre. A luminosidade se espalhava também dentro de mim, me inundando.
- O mal que a persegue quase a alcançou, Marie, mas eu a protejo e sou mais forte. Não se preocupe. Você e sua filha ficarão bem.
Depois se virou para ir embora. Incapaz de falar, imaginei uma pergunta: "Quem é você?"
Quase alcançando outra vez a porta, a dama olhou para trás com um sorriso radiante e respondeu:
- Sou Sara Kali.
Fechei meus olhos enquanto o clarão esmaecia, me entregando a um sono profundo, revigorante. Acordei com a luz tímida do amanhecer através da janela. Ouvia canto de pássaros ao longe.
Me sentia bem. Tranquila, amada e até mesmo nutrida.
Sem aviso, algo que parecia uma cambalhota em minhas entranhas. Poderia ser meu estômago vazio. Ou poderia ser...
Um nome de menina surgiu em minha mente, apesar de eu achar que não vale a pena. Sentei no chão duro e refleti sobre meu sonho.
Nunca ouvi falar em Sara Kali.
A luz ao redor de sua cabeça me remete aos santos nos vitrais da igreja.
Cordialmente,
Marie.
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Diário de Marie
Historical FictionMarie-Cleménce Chevalier, mimada moça de família na França do fim do século XVIII, sempre teve suas escolhas pessoais determinadas pelos outros. O que vestir. Aonde ir. Com quem andar. Com quem casar. Na infância ela ainda se revoltava. Também um...