Querido diário,
Preto.
Preto, preto, preto.
A cor da morte está por todo lugar, sufocante, sinistra, inescapável como a própria.
Tive a rara sorte de não ter convivido com a morte tantas vezes durante a vida. No entanto, as poucas vezes sempre são o bastante para nos marcar por anos.
Não havia jeito.
E ainda não se sabe o que aconteceu.
Meu pobre marido definhou rápido, no sentido mais literal da palavra.
Percebi o quanto eu amava seus sorrisos, sua timidez, o brilho no seu olhar. Percebi o quanto, porque não imaginava quão rápido desapareceriam.
Ele mal se erguia da cama. Mal tínhamos algum momento de falsa esperança. Tudo o que testemunhamos foi a vida vazando para fora dele em velocidade impiedosa, junto com mais alguns eventuais jatos de sangue expelido.
Eu não dormia, sequer fechava os olhos. Não via amanhecer ou anoitecer. Não deixei sua cabeceira.
O médico e o padre de plantão recomendaram, pelo meu bem-estar, que eu o fizesse. Não era capaz.
Recorda o sentimento de culpa, que outras vezes mencionei aqui?
A culpa aumentava e me oprimia cada vez mais.
A última conversa que eu e Antoine tivemos, durante seu resquício final de saúde antes de ser confinado à cama, continuava a me assombrar.
Me recusava a deixá-lo partir dessa vida com aquele sentimento de traição, tão errado, cravado em seu peito.
Eu o amava. Eu o amava, e ele nunca saberia.
Ou será que não?
Era muito tarde da noite.
A lua minguante nos observava solene pela janela, como parece sempre me acompanhar. Por bem ou por mal, na pobreza ou riqueza. Como casamento.
De tão exausta e de tão surreal que foi a cena, nunca saberei se não passou de um delírio meu. Um tipo de criação de minha mente para que eu me sentisse melhor. Sou tão grata, de qualquer forma.
Era silêncio absoluto. Todos tinham se recolhido exceto por mim... E pelo meu marido moribundo, ali prostrado.
Iluminados pelo suave e prateado brilho lunar.
Eu dormia por exaustão física, em posição muito desconfortável: ajoelhada de cabeça reclinada na cama.
Ouvia sua respiração difícil, dolorosa. Ainda existente, fato que não me trazia tanto alívio quanto desespero.
Um toque familiar, de repente.
Uma mão em meus cabelos.
Despertei assustada ao processar o carinho e ergui os olhos inchados.
Ali estava Antoine. Deitado, porém, pela primeira vez em muito tempo, completamente desperto e atento.
Observava ao redor confuso, movendo as pupilas e no máximo um pouco a cabeça. Parecia se perguntar como tinha ido parar ali. Isso fazia sentido depois de longos períodos inconsciente.
- Antoine...? - murmurei assustada, a voz meio rouca.
Ele fez que sim e se reclinou com muita dificuldade.
- Marie. - chamou de volta.
Me ergui para ver melhor aquele milagre. Poderia ter pensado na famosa "euforia da morte." São os últimos minutos enérgicos, quase saudáveis de um doente terminal. Já descrita por vários médicos.
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Diário de Marie
Historical FictionMarie-Cleménce Chevalier, mimada moça de família na França do fim do século XVIII, sempre teve suas escolhas pessoais determinadas pelos outros. O que vestir. Aonde ir. Com quem andar. Com quem casar. Na infância ela ainda se revoltava. Também um...