No topo de uma montanha árida e pouco frequentada, em um canto esquecido de um vilarejo que não pode ser localizado em quase nenhum mapa, ficava a loja de um feiticeiro.
Esse isolamento era necessário. Dmitri precisava garantir como apenas pessoas que sabiam a que vieram e não iriam ameaçá-lo encontrassem aquele local.
O jovem muito agasalhado, em combate ao vento frio, batendo em sua porta naquele início de tarde era uma delas.
Apoiado em uma bengala – não por idade, por um antigo ferimento nunca tratado de maneira adequada que o aleijou – o mago da montanha foi abrir a porta ao som de um sininho.
Viu um rapaz de espessos cabelos negros e pele escura. Um grosso cachecol cobria metade de seu rosto, deixando visível apenas o par de olhos que Dmitri reconheceria à uma milha de distância.
– Ignus, meu sobrinho? – exclamou surpreso.
– Olá, tio. Quanto tempo! – replicou o visitante, abraçando-o e logo se livrando das camadas de agasalho.
Na verdade não era inverno. Naquela região sempre fazia frio.
– O que aconteceu com você? – logo indagou Dmitri. Não via com frequência o sobrinho, porque abandonou a vida nômade há muito tempo para se dedicar ao seu maior talento.
Ainda assim conhecia-o bem o suficiente para notá-lo abatido. Desanimado.
– O motivo pelo qual estou aqui hoje. Não ria... – revelou Ignus, mal tendo forças para fazer uma gracinha.
Seu tio, perplexo, sentou-se com ele e serviu um chá de ervas medicinais para ouvir uma história de amor.
Seu sobrinho tinha se apaixonado...?
Bem, aconteceria um dia. Aquele era um jovem sonhador e sensível como qualquer outro. Só que até então, seu coração tinha parecido ser tão desapegado e inabalável quanto sua natureza.
Devia ser uma mocinha e tanto, aquela a lhe dar a fita de seda azul que agora desamarrava do pulso e contemplava cheio de dor.
– Essa é a cor dos olhos dela, por sinal. – recordou.
– De tantas motivações para pedir um feitiço, logo essa? – Seu tio viu-se obrigado a indagar.
– Sim, eu sei. Pedi para não rir.
– Não estou rindo. É muito sério. Esse tipo de amor à primeira vista é mais que amor, é destino.
Ignus suspirou amargo.
– Destino? Então por qual motivo, a essa altura, ela já é esposa de outro?
– Porque o destino encontra impedimentos. – explicou Dmitri, tão sábio e paciente como sempre foi. – Impedimentos esses que você, sobrinho, quer ajuda para driblar. Sei do que precisa.
– Sabe?
Ignus estava surpreso com a adivinhação.
– Alguma vez deixei de saber? – ironizou o ocultista experiente.
O jovem fez que não. Observou seu tio transitando entre largas prateleiras contendo todo tipo de objeto e ingrediente misterioso. Plantas, temperos, fragmentos de ossos e alguns itens que pareciam até dentes ou dedos humanos mumificados. Não poderiam ser, certo?
Em uma cesta, selecionou o que era necessário para o feitiço. Escolheu da estante um antigo livro em capa de couro e escrito em latim – que lia fluentemente.
– Tem certeza que essa Marie-Cleménce ama você? – quis saber de súbito, acomodando-se na mesa de trabalho enquanto Ignus o seguia.
– Tenho... – replicou o garoto confuso. – Com certeza tinha quando nos separamos e ela me deu essa fita. Vai ser útil, não?
– Sim. Essencial. Com isso iremos rastreá-la.
Segurou o último ingrediente que o rapaz oferecia, relutante de apego, e colocou no fundo de um caldeirão.
– Não se ofenda por eu ter feito essa pergunta. – acrescentou o mago. – É porque isso que faremos é um poderoso feitiço de reunião, não de amarração. Será anulado na mesma hora se não houver amor nas duas partes. E por ser tão poderoso...
– O quê? – estimulou Ignus, interessado. Não entendia quase nada do que era dito. Podia supor pelo contexto.
– Tudo que é muito poderoso tem seus riscos. – afirmou, sombrio, o mais velho. – Pessoas podem sair feridas. Até mortas. Assume essas consequências?
Ignus hesitou.
– Marie vai ficar bem?
– Sim. Ela, com certeza.
– Então... Então tudo certo. – concordou o jovem.
Visivelmente não estava feliz com a perspectiva. Não tinha forças para objetar.
Aquele amor perdido era como ser forçado a caminhar com uma perna decepada. O ferimento continuava sangrando e logo iria drená-lo.
Seu tio reconhecia a face do puro desespero, mesmo em pessoas boas, quando a via. Começou a preparar o feitiço.
E a recitar encantamentos.
Iluminado por uma lareira cujas chamas se elevavam multicoloridas, invocou deuses pagãos: Hades, Hécate, Morrígan.
O vento lá fora pareceu assobiar mais alto, quase ensurdecedor quando invocou demônios: Astaroth, Valac, Baphomet.
Finalmente, buscando neutralizar o mal com um pouco de proteção e bondade, o feiticeiro fez o sinal da cruz em si próprio e no sobrinho. Rezou uma prece à santa Sara Kali, padroeira dos ciganos, e beijou o medalhão que trazia.
– É isso. – anunciou. Sentia ranger a perna retorcida com o poder daquela magia.
– Acabou?
– Sim. Por hora.
Ignus não conseguia disfarçar o leve pavor. Já não reconhecia o precioso presente de sua amada, encoberto por óleos e especiarias místicas no fundo de um caldeirão.
Porém, se aquilo desse certo... Ele a teria outra vez em seus braços, para sempre.
Ou ao menos achava.
Quando agradeceu e pagou certa quantia em dinheiro, que poderia ter sido muito maior se não fosse por um desconto, ouviu o último aviso:
– Não cobro muito de você porque parece realmente precisar dessa magia. Não gosto de ver meu sobrinho definhando. Mas...
– Sim? – quis saber o nômade, sem muita paciência para aqueles enigmas.
– Nem tudo é cobrado em dinheiro. Fique atento. Grandes impactos têm grandes preços. Sei que seu amor avassalador por essa moça fará com que tudo pareça valer a pena.
– Nesse aspecto, não tenho dúvidas...
– Apenas cuidado, meu caro. Cuidado. Bem... – Abriu a porta para ele. – Que bons ventos sempre o orientem. Envie minhas saudações à Áurea e Amarílis. Adeus.
E com isso, outra vez, tio bruxo e sobrinho separavam caminhos.
Voltando a se agasalhar o máximo que podia, Ignus refletiu por um segundo antes de escalar de volta a íngreme montanha.
Amarílis era sua mãe, cunhada de tio Dmitri, irmão de seu pai assassinado.
Havia até pressentido, em sonho, aquela desgraça na época.
O aviso não chegou a tempo.
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Nota:
Sentiram falta dele? Eu senti ❤️
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Diário de Marie
Historical FictionMarie-Cleménce Chevalier, mimada moça de família na França do fim do século XVIII, sempre teve suas escolhas pessoais determinadas pelos outros. O que vestir. Aonde ir. Com quem andar. Com quem casar. Na infância ela ainda se revoltava. Também um...