16 de abril de 1793

102 11 36
                                    

Querido diário,

Ai meu Deus....

Não devemos usar o nome de Deus em vão. Acho que nesse caso pode ser relevado. Porque aconteceu a última coisa que eu esperava.

Vi aquele rapaz novamente.

Agora sei seu nome - Ignus. Nunca ouvi algo parecido. Tenho de admitir como é um bonito nome. Também admito que ele é a petulância encarnada e algo me diz que não me livrarei dele tão fácil.

Cismou comigo. Mal me conhece!

Tudo começou assim...

Comigo acordando e me preparando para um petit-déjauner (café-da-manhã) com meus pais. Como sempre.

Mesa repleta de pães, bolos, frutas, sanduíches e sucos. Tudo servido em nossa prataria mais fina. Mamãe gosta desse luxo no dia a dia.

Só que dessa vez, o teor da conversa em família me incomodou. Desataram a falar mal dos ciganos. Os mesmos ciganos que conheci de perto ontem e considerei tão interessantes, ainda que misteriosos.

- E aqueles vagabundos que chegaram em grupos na cidade...? - começou minha mãe. Não é sempre que eu a ouço usando palavras tão chulas. Já fiquei tensa em minha cadeira.

- Os ciganos? - retrucou meu pai. - Terrível, não? Pediram ao prefeito para expulsá-los e sabe o que ele disse?

- O quê?

- Que não vai. Porque quando questionados, disseram estarem apenas de passagem. Ainda não causaram confusão. - Senti uma esperança estranha no "ainda." - E o prefeito acha que não há nada de errado se desejam apenas entreter o povo e conseguir algum dinheiro honesto.

Ergui as sobrancelhas.

Ao menos o prefeito tinha algum senso. Mesmo que toda a minha vizinhança e como eu ali percebia, até meus pais não tivessem.

De repente os olhares pousaram em mim.

- Qual sua opinião a respeito, Marie-Cleménce? - indagou mamãe.

Meus pais me escolheram esse nome pesado e não aceitam que eu me denomine apenas como Marie, claro. Paciência.

Fui sincera. Não iria ofender aquelas pessoas em nome das aparências como todos faziam, já seria demais para mim.

- Concordo com o prefeito. - Vi a surpresa inundando ambas as expressões. - São apenas pessoas. De uma cultura diferente, sim... Mas vivemos presos nessa burguesia sem graça e...

- Bem - declarou meu pai, batendo na mesa em algo que poderia ser conclusão ou leve ameaça. - Desde que você não se envolva com eles. Seria um grande desgosto. E muito menos se aproxime daquela feira caótica.

Ah... Eu já tinha me aproximado.

Nem fiquei para ouvir a proibição, apenas fui.

Como quando eu era uma garotinha irreverente. Bons tempo, aqueles. Eu e Amélie...

Concordei com a cabeça, ensaiando submissão.

Mamãe interrompeu o diálogo desconfortável para me pedir em tom suave:

- Filha, que tal pegar essa lista de compras e ir até a quitanda agora? Estamos precisando.

Dei um suspiro cansado e estendi a mão para pegar a longa lista. Meus músculos doíam por antecipação.

Saí no sol suave da manhã, de chapéu, vestido azul com rendas brancas e uma bolsa com dinheiro.

Voltei carregando mais pacotes do que podia suportar. Tapava minha vista do chão e eu corria risco de um tropeço.

Diário de MarieOnde histórias criam vida. Descubra agora