Querido diário,
Encontrei esse caderno surrado no fundo de uma gaveta e só de olhar para ele, já me encho de lembranças.
Que época intensa foi aquela. A Roda da Fortuna girou, e girou sem piedade.
A partir daquela última entrada, segui minha vida vagando por estradas sem fim. Algumas gargantas cortadas e garrafas espatifadas parecem ter ensinado algo a meus captores sobre não condenar alguém sem provas.
Ainda mais alguém protegida por um clã de ciganos indomáveis e por fortes guias espirituais.
Logo entendi quem era Sara Kali. É uma santa, que eu não conhecia por não ser cultuada pelos católicos burgueses. É padroeira do povo Roma, da maternidade e dos desamparados... Tudo muito adequado para a situação.
Foi invocada pelo tio bruxo de Ignus enquanto ele lançava o feitiço e ouviu o chamado. De acordo com o sexto sentido de madame Lydia, santa Sara Kali continua ao meu lado a todo o momento.
Talvez permaneça até o fim dos meus dias.
Por falar em medo da morte... Agora sou mãe não apenas de Esperança, como de outros três filhos.
O parto é sempre uma experiência assustadora. Eu estar aqui escrevendo é prova de como lidei bem com cada um deles.
Ciganas costumam dar à luz de cócoras, com a gravidade ajudando.
Amo demais a família que construí.
Esperança é agora uma linda menina de 8 anos, esperta e tagarela como o pai. Com um lado sensível e cauteloso que só pode ter herdado de mim.
Adora andar a cavalo com a tia Áurea e escalar árvores, para meu pânico, quanto mais altas e com maior risco de cair e quebrar o pescoço, melhor. Ela nunca cai - aí vejo sua cautela.
Seus irmãos são Rosella, de 6 anos, Laurentis, de 4 e Florian, um bebê gordinho de quase um ano.
Duas meninas e dois meninos. Só paramos de nos reproduzir como coelhos quando eu, desesperada, pedi algum chá para resolver a questão sem precisar de abstinência.
Agora, toda semana, madame Lydia me prepara uma mistura de artemísia e boldo. Amarga e eficiente. Minhas regras deixaram de vir, ou vêm bem ralas.
Aprendo bruxaria com ela... A simpatia amaldiçoando o agressor da minha irmã terminou sendo a primeira de muitas.
Talvez, quando a idade me encurvar e madame Lydia se reduzir a um monte de histórias, eu me torne próxima anciã cartomante dessas caravanas.
Não posso dizer que eu e Ignus passamos dez anos em perfeita harmonia. Brigamos às vezes, ainda mais depois dos nossos quatro bezerrinhos agitados, que por mais queridos que sejam, não deixam de nos torrar a paciência.
São brigas que nunca duram muito, contornadas com diálogo e boa dose de amor ardente. Esses dias, fazendo cafuné, encontrei um fio prateado em sua cabeleira negra e ele culpou o estresse.
Sou muito feliz.
Porém, até algum tempo atrás, essa felicidade era manchada por uma dor reprimida. Saudade.
Milhas de viagem não apagaram da minha alma a memória do lugar de onde vim. Muito menos daqueles que deixei para trás.
Precisávamos de cautela. Não ouvíamos nada sobre guardas, ainda assim, o silêncio não era garantia.
Até que decidimos como talvez... Talvez quase dez anos bastassem.
Há pouco retornamos para Provença.
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Diário de Marie
Historical FictionMarie-Cleménce Chevalier, mimada moça de família na França do fim do século XVIII, sempre teve suas escolhas pessoais determinadas pelos outros. O que vestir. Aonde ir. Com quem andar. Com quem casar. Na infância ela ainda se revoltava. Também um...