18 de abril de 1793

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Querido diário,

Estou escrevendo isso sob os primeiros raios do amanhecer. Não dormi essa noite. Não teria sido capaz.

Mesmo que ninguém tenha descoberto - ainda -, sei estar verdadeiramente encrencada agora.

Começou com um ruído de pedras se chocando contra minha janela. Deitada, não tive certeza se era sonho ou realidade. Bastou para me acordar.

Uma voz abafada e cautelosa pareceu dizer:

- Marie!

Tudo bem, não era sonho. Levantei num salto e fui até a fonte do chamado. Ergui o vidro.

Quem mais seria? Ignus estava ali, dois andares abaixo. Seus olhos como chamas ardentes mesmo no escuro, fixos em mim e felizes por terem conquistado minha atenção.

- Ficou louco? - Era tudo que eu podia indagar, minha voz algo além de um sussurro apenas para que conseguisse me ouvir.

- Talvez. Desça, Rapunzel, quero mostrar algo. Algo que só é possível ver de noite.

Nem pensei nos possíveis riscos de sair com um desconhecido escuridão adentro.

Não sentia que ele fosse um desconhecido... Mesmo sendo.

Jamais ofereça novidades e aventura à uma garota tão entediada quanto eu. É tudo que posso declarar. Fiz que sim para ele e pedi que aguardasse em um gesto.

Acendi uma vela em um pequeno castiçal que apoiei sobre a cabeceira, iluminando o quarto com instável luz dourada enquanto abria meu armário.

Ali estava o cravo cor-de-rosa. Adoraria poder tê-lo posto em um vaso com água para que durasse mais, tão bonito... O risco de alguém perceber e questionar era grande. Deixei-o uma prateleira murchando e perfumando com aroma fresco meus pertences.

Puxei um grosso e comprido sobretudo de lã. Calcei minhas fiéis botinas. Iria de camisola mesmo. Trabalho demais escolher um vestido com anáguas e corpete, não?

Munida com a vela, desci o mais silenciosamente possível. Não que fosse tão necessário, ouvia roncos sonoros vindo do quarto dos meus pais.

Com uma pesada chave que levaria comigo por um tempo, abri e fechei a porta da frente.

Claro que Ignus continuava ali, radiante em me ver.

- Às vezes acho que você perdeu toda a noção e você ainda me surpreende. - repreendi em tom baixo, sem poder disfarçar o riso.

- Que bom. Gosto de surpreender as pessoas. Vamos?

Indicou com um gesto de cabeça a rua silenciosa.

- Eu não deveria confiar em você, sabia disso? - murmurei, passando a mão livre pelo cabelo castanho meio desgrenhado.

- Se desceu sem pestanejar, acho que confia. - observou perspicaz. - E tem razão nisso. Posso ser muitas coisas, mas não um estuprador, assassino, ladrão de crianças ou sei lá mais o quê. Mesmo que ciganos sejam acusados disso o tempo todo.

Suspirei irritada com a perspectiva.

- Estou certa de que não. Agora vamos andando... É arriscado ficarmos por aqui... Muita coragem a sua.

Ignus parecia quase orgulhoso de ser tão imprudente e eu ali preocupada. Deixei que segurasse minha mão para me guiar pela noite de lua crescente amarelada coberta de algumas nuvens leves. A chuva tinha dado trégua.

- Você está de trajes de dormir? - reparou por fim.

- Talvez. E... - ponderei. - Foi você quem andou deixando flores anônimas na minha caixa de correios, Ignus?

Diário de MarieOnde histórias criam vida. Descubra agora