ANTÔNIO:
MORADOR.Aqui no morro eu sou só o Antônio, morou? Pouca gente sabe da minha existência, No morro, sou só “véi”, “senhor”, ou “aquele cara que passa calado todo dia com a marmita na mão”, Tenho quarenta e sete anos, e mais rugas do que lembranças boas.
Moro aqui desde menino, desde quando ainda dava pra ver as estrelas sem ser pela mira de fuzil, Vi esse morro crescer, vi gente boa morrer, vi criança virar soldado, vi mãe gritar com o coração na mão... e continuei, Continuei porque não tive escolha, porque viver aqui é sobreviver calado, E sobreviver em silêncio sempre foi meu forte.
Tenho uma mulher, A mesma desde os meus Quinze anos, Lourdes, E um filho… meu pequeno guerreiro, Lucas, O menino tem só sete anos, mas já sabe da vida mais do que muito homem armado, Lucas nasceu com fibrose cística, uma doença que maltrata o pulmão dele como se fosse o mundo tentando arrancar o ar do meu filho à força, Ele precisa de remédio todo dia, inalação, fisioterapia, E precisa de mim.
Por isso eu acordo todo santo dia às 4:20 da manhã, Ainda escuro, ainda perigoso,Desço com o coração apertado, com medo de tomar uma bala perdida, ou pior, uma bala achada, Trabalho limpando bueiro de rodovias, Volto só à noite, A mesma trilha, o mesmo medo.
Não sou envolvido, Nunca fui, Mas o morro não pergunta se você é certo, ele só exige que você sobreviva, E eu sobrevivo, Com a cabeça baixa, com a marmita amassada, com o coração espremido.
Já me abordaram, Uma vez, um dos novinhos do bonde veio saber quem eu era, porque passava tanto e não falava com ninguém, Disse pra ele que não tinha o que falar, que minha conversa era com Deus, Ele riu, me chamou de doido e deixou pra lá, Desde então, só aceno com a cabeça, Um pra cada lado, Pros menino do movimento, pros moradores, pra polícia, Nunca fui de gritar, porque nesse lugar, quem fala muito morre cedo.
Minha esposa vende trufa, faz faxina quando arruma, Mas é o meu corre que mantém o gás, a luz e a bombinha de Lucas funcionando, Tem mês que não dá, Já vi ela chorar escondido com medo de contar que o leite acabou, Já deixei de almoçar pra sobrar pra ele, Já dormi com fome pra ver ele sorrindo com um copo de Toddynho na mão.
Lucas sonha em ser médico, A gente diz que vai acontecer, Eu sei que é difícil, mas também sei que ele é mais forte do que eu.
O pior não é a dor, O pior é o medo, O medo de um dia o tiroteio me pegar no caminho do trabalho, o medo de não conseguir pagar o antibiótico, o medo de que Lucas piore e eu não esteja lá, O medo de que o morro, que me viu crescer, me leve embora sem dar explicação, E que o povo só lembre de mim como “o senhorzinho que passava com a marmita”.
Mas enquanto eu tiver força, eu vou, Porque aqui, o pai que não luta, assiste o filho perder a guerra.
[...]
Acordei às 4:20 da manhã, como sempre, Mas hoje, o estômago pesou mais do que o corpo cansado, Tinha só um copo e meio de café preto na garrafa, Deixei o resto do pó acabar ontem, O bolo de milho que a Lourdes tinha feito na noite passada, deixei guardado, intacto, enrolado no pano, Era pro Lucas comer quando acordasse, com leite, se ainda tivesse, Ela também ia querer um pedaço, Eu? Eu já tô acostumado com o gosto do amargo puro, Café vazio pra estômago vazio, Mas o coração cheio de coisa que eu não posso dizer em voz alta.
Me vesti em silêncio, O uniforme sujo da firma, a mochila com a marmita ainda quente, e a garrafinha d’água, Hoje era dia de descer pro trabalho na limpeza de bueiro e galeria embaixo da rodovia, Um trampo que fede, pesa, e faz muita gente torcer o nariz, Mas é o que paga a bombinha do meu filho, o antibiótico da semana, o pão da noite, Então eu vou.
Lourdes: Bom trabalho meu amor. — Ajeitou meu uniforme. — Vou orar pela gente, me manda mensagem quando chegar, por favor. — Te abracei, dei um beijo na sua testa.

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Sob O Morro
Fanfiction📍Rio de janeiro, Rocinha +18 Eu não sonhei em ser dono de morro, só fui vivendo, Quando vi, já tava com fuzil no ombro, nome na boca da polícia e respeito na quebrada, Aqui, quem anda devagar vira alvo, quem ama demais vira fraqueza... mas mesmo no...