Capítulo VIII - Caixa de Pandora(Pt. 2)

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Durante o pouco tempo que fiquei em casa, notei meu reflexo no espelho. Meu cabelo estava bagunçado e desgrenhado. Não tinha qualquer maquiagem no rosto. Nem mesmo qualquer jóia ou brincos ou nada que costumava utilizar com frequência antes. Parecia um fantasma.
As pessoas não poderiam me reconhecer se me vissem no estado que estava. Não, aquele não podia ser eu. Eu não era assim.
Não mais.
Não tinha esse olhar perdido. Não tinha essas olheiras. Muito menos minhas mãos tremiam tanto.
Eu era Afrodite. O hacker sem gênero e independente, sem compromissos. Não havia nada nem ninguém que pudesse me parar, ou ao menos destruir minha própria imagem de beleza.
Eu não era quem via no espelho. Esse adulto magricela e bagunçado com o olhar perdido, assustado enquanto observava pelos cantos do apartamento, como se o próprio vazio ou a própria sombra pudesse assombrá-lo com memórias das formas que havia ferido as pessoas mais queridas da vida dele. Não era eu. Não mais.
Pare de olhar para mim como se precisasse de algo mais. Eu não preciso de você. Eu não preciso de mais nada ou de ninguém.
Você é apenas uma parte do meu passado a qual me desprendi, então saia daqui. Saia.
SAIA!

Estilhaçar.
Assustei-me com o próprio som antes de perceber o que havia feito. Olhei para a direção do som e percebi os cacos quebrados do espelho.
Joguei-me no chão de joelhos. Estava chorando.
"Não, não, não. Não fui eu! Eu não quebrei o espelho! Por favor, mãe, me perdoe! Por favor, mãe! Me desculpamedesculpamedesculpamedesculpa!"
Minha voz falhava em meio aos soluços. Quase podia escutar a voz dela a me responder, seu olhar repreendedor. A cara de raiva que me oferecia. Aproximava-se de mim.
"Por favor, não me tranque no depósito de novo."
Chorava e chorava. Engasguei em meus próprios soluços e tossi em meio ao desespero. Quase podia ver sua figura.
Várias imagens passaram em minha cabeça e eu pude ver minha mãe. Via ela quando trancou-me no depósito, quando me deixava de castigo no banquinho ou quando disse a mim que me odiava.
"Eu farei o que quiser para que me perdoe, mãe, por favor! Por favor, não me odeie, seria um bom menino, serei o que você quiser, mãe, por favor!"
Por muito tempo, fiquei ali no canto encolhido do banheiro. Não sei por quanto tempo chorei. Repeti diversas vezes que queria que me perdoasse, ou que não fora eu que quebraria o espelho.
Aos poucos, a consciência de minha solidão voltou. Percebi que chorava sozinhx. Que o apartamento estava vazio e que ninguém viria atrás de mim.
Minha respiração ainda ofegante, não sabia dizer o que acontecera. Estava assustado. Meu corpo tinha se movido sozinhx, enquanto eu perdia o controle dos movimentos.
Eu havia repetido as ações que havia feito quando pequeno, percebi. Ainda tremia do puro terror que havia sentido minutos antes. Sentia como se não estivesse realmente ali, e que finalmente retornava a mim o senso do tempo.
O apartamento estava vazio. Estava sozinhx. Ainda assim, ao mesmo tempo, estava poluído de memórias que eu era incapaz de processar.
Não podia ficar.

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Andava em meio às ruas de Milão. Passando por entre as mais diversas pessoas, moradores e frequentadores das ruas movimentadas, eu não sabia para onde ia. Não sabia de onde vinha.
Sabia que vários dias já haviam passado, mas havia perdido a noção do tempo. Vivia apenas sobre as tarefas que me davam no dia para entregar.
Não conseguia mais retornar ao meu apartamento por muito tempo para ver meus horários. Procurava outros lugares na cidade onde pudesse trabalhar pacificamente, porque em casa havia se tornado impossível. 
Também andava um pouco assustado. Não sabia o que me levaria a reagir da maneira que reage depois que quebrei o espelho. Foi assustador para mim, os sentimentos que senti.
Olhei em volta para ver se conseguia encontrar restaurantes ou lanchonetes na região que tivessem algum serviço de wifi que pudesse utilizar. Não conhecia a região. Mal sabia onde estava exatamente, talvez pudesse até mesmo estar em território fora do domínio dos Moretti.
Entrei na primeira que encontrei e pedi algo simples para comer e um café, acredito. Não sei ao certo.
Não sei como estava vestido. Acredito que tenha pegado qualquer moletom e calça jeans que tivesse visto primeiro.
Sentei em uma das mesas e puxei meu notebook. Não sei dizer quanto tempo fiquei lá trabalhando. Só sei dizer que, quando levantei o olhar, uma moça veio me dizer que estavam fechando. Pedi a conta, paguei e voltei para a rua.
Ainda estava muito movimentada, e o céu já estava estrelado. Devia voltar para casa, mas não queria. Não, isso não. Não me faça voltar para casa.
Ainda sem rumo em meio as ruas movimentadas, por vezes olhando por cima do ombro para figuras estranhas que encontrava na rua. Já havia visto eles antes? Não sabia dizer ao certo.
Às vezes, eu sentia que reconhecia algumas pessoas na rua. Uma vez, tinha certeza que havia visto Justino. Vinha em minha direção e andei vários quarteirões para despistá-lo, apenas para descobrir que não era ele.
Outra vez, foi o Theo. Parti em disparada e me escondi por algum motivo que não sabia o por quê. Não queria que me visse. Não podia suportar que me visse.
Percebi que me sentia culpado pela forma como o tratei antes. Pela forma fria e egoísta que havia agido na festa e durante o período que estava doente. Ele havia sido tão paciente comigo.
Precisava pedir desculpas, mas não me sentia preparado. Não ainda. Sentia-me assombrado pelo meu passado.
Precisava encontrar um lugar para dormir. Algum hotel. Não podia voltar para casa ainda.

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Destranquei a porta. Meu reflexo partido em mil pedaços olhou de volta para mim quando abri a porta. Havia esquecido de limpar os cacos do espelho que havia quebrado.
Tudo estava da forma que havia deixado.
Ainda assim, tudo estava extremamente bagunçado. Nem parecia que o Theo tinha organizado… Há quanto tempo mesmo? Não sabia.
Eu me sentia como um fantasma em meio às ruas de Milão. Em casa, era um menino assustado, tomado por esse buraco ou vazio que nem a bebida nem a vaidade preenchiam mais. Sentia-se sem propósito.
Precisava fazer algo. Alguma coisa que pudesse me tirar do estupor, desse buraco sem fim. Dessa solidão.
Queria escutar a voz de alguém.

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Não sabia se daria certo. Ao mesmo tempo, meu cérebro me martelava de curiosidade. Ao mesmo tempo, sentia que meu corpo dizia que não podia, não tinha o direito. Havia ferido pessoas demais, não havia razão para procurá-las.
Não havia razão para ligar pro meu pai.
Peguei o telefone. 
Eu não merecia. 
Digitei o número. Apertei o botão de ligar e coloquei o celular no ouvido.
Sabia que a ligação provavelmente seria uma fortuna. Não pensei nisso na hora. Perguntava-me se atenderia. Minha cabeça estava cheia de dúvidas, de perguntas, de coisas a dizer.
Escutei o som de que o telefone estava tocando do outro lado. Ele poderia ter trocado o número de telefone milhares de vezes. Afinal de contas, já fazia 8 anos.
À medida que o tempo passava, comecei a me preocupar. Lembrei-me do sonho. Pensei nos 8 anos que passei distante dele. O que pode ter acontecido nesses oito anos? Estaria bem? Estaria feliz sem mim?
Estaria ainda vivo?
"Pronto?"
Escutei sua voz do outro lado da linha. Estava em choque. Podia afirmar que havia envelhecido durante esses anos. Sua voz saiu rouca e cansada. Eu não conseguia falar.
Se falasse qualquer coisa, iria chorar.
Estava estarrecido. Parte de mim queria escutar cada palavra que ele iria dizer do outro lado da linha. A outra parte dizia para que eu desligasse, que ele não iria me perdoar se soubesse.
Tentava conter minha respiração, e levei minha mão à boca.
"Alô? Com quem falo?"
Repetiu as palavras. Um silêncio seguiu enquanto esperava minha resposta. Conseguia imaginá-lo no outro lado da linha, com o telefone antigo no ouvido.
Não havia como ele me reconhecer. Havia trocado de número diversas vezes devido aos serviços que fazia, pois sempre encontravam uma forma de me hackear. Ou de realizar golpes. Eu teria que falar.

Por que me deixou para trás?

Será que realmente falhei?

“Ah, é... “
Tentei falar algo, mas nada saia. Sabia as palavras que queria dizer, mas elas me falharam. Sou eu, pai. Seu filho, Ariel. Me desculpe por tê-lo deixado. Nunca mais farei isso de novo, prometo. Eu ainda te amo.
Não saiu, tentei começar a frase, mas nada saia. Apenas vogais desconcertadas.

“Ariel?”

Não.
Eu não podia.
Eu não tinha o menor direito de aparecer agora. Quando era tarde demais.

Você só vai piorar as coisas

Joguei o celular longe em meio ao meu pânico. Só percebi o que fiz quando vi que havia quebrado a tela dele em pedaços. Me movi sem nem pensar. Estava feito.
Tremia.
Eu só destruía as coisas que eu mais amava.

Era o que eu fazia. De que valia mais chorar? De que valia mais pedir perdão? De que valia continuar tentando, implorando pelo amor que eu não mereço?
Por que ainda estava aqui na Itália? Quando sabia que tudo que acontecia só ia acabar como meu espelho. Como meu celular. Como minha própria imagem.
Despedaçado. Quebrado.
Destruído.
Eu não merecia ser amado. Eu não merecia amar.
Voltei o olhar para uma mochila que tinha.

Ariel.EXEOnde histórias criam vida. Descubra agora