Pertencer

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Manu Gavassi
Presente

Às vezes eu sinto que as pessoas me idealizam demais. Não que eu não mereça o apreço e admiração delas, mas eu sou humana, não sou de ferro. Inevitavelmente, vou decepcionar alguém. Antes eu me culpava muito por isso. Não ser quem as pessoas esperam o tempo todo já me fez muito mal na vida, mas desde antes do BBB isso já estava sendo trabalhado em mim.

Nada muda de repente. Praticamente tudo faz parte de um processo, às vezes a gente se dá conta e outras vezes não, mas o processo tá sempre ali, acontecendo enquanto a gente vai vivendo. Agora não é diferente. Porque seria?

Ao contrário da expectativa de todos sobre mim, eu não sou a namorada perfeita e não melhorei rapidamente dessa síndrome. Logo depois da conversa pra lá de difícil e esclarecedora com a Rafa, eu entendi muitas coisas, uma delas é que eu precisava ser mais eu mesma e menos quem eu achava que as pessoas precisavam que eu fosse. Por isso acabei confessando da forma mais amena possível que era necessário chamar o meu médico. Pois é. Meu pulmão estava queimando, as dores abdominais estavam incomodando demais e aquilo não deveria ser nada normal.

Ver mais uma vez a cara de assustada da minha namorada foi difícil, mas um divisor importante pra nós. Depois de não sei quanto tempo, eu estava dividindo com ela uma preocupação sobre eu mesma. Não sobre a gente, nossas carreiras, futuro, famílias, era sobre mim e ponto. Nem lembro a última vez que me deixei ser frágil e assumi pra Rafa que eu precisava da ajuda dela. Isso me fez pensar em como eu estava agindo de forma errada tentando estar sempre no controle quando tá tudo bem simplesmente precisar do outro.

E Rafa correspondeu. Ficou ao meu lado o tempo todo. Em cada exame, em cada ida e vinda por aqueles corredores. Seu olhar era preocupado, mas ela parecia tão destemida conversando com os médicos, tomando conta de mim, cuidando do meu bem-estar. Estranhamente, estar no hospital acelerou alguns processos porque vendo como ela parecia no controle e assumia esse papel protetor tão bem, acabei entendendo que eu poderia deixar de lutar algumas batalhas se Rafa estivesse comigo. Ela daria conta, é uma verdadeira gladiadora. Todas as dificuldades que ela demonstrou nos últimos meses me fizeram esquecer dessa sua obstinação na vida.

Foi inevitável. Perceber que eu perdi a perspectiva sobre essa mulher incrível, que sempre foi em busca do seu e venceu, me deixou arrasada comigo mesma. Como pode? Fui a primeira pessoa a afirmar veementemente que Rafa nunca precisou ser salva por ninguém e acabei caindo nessa mesma armadilha. Eu estava sendo estúpida e, graças a Deus, percebi isso antes de ser tarde demais.

É, eu sei. A nossa relação nunca esteve tão firme e publicamente sólida como nas últimas seis semanas. Evoluimos tanto. Assumimos o namoro, fomos morar juntas, acertamos os ponteiros com a família dela, viajamos, eu abri mão de algumas coisas pra não nos separarmos fisicamente, resolvemos ter um bebê. Acontece que no meio desse monte de coisas, nós duas esquecemos mesmo de olhar um pouco mais pra nossa relação. Algumas coisas podem não fazer tanta diferença hoje que estamos tão ocupadas com uma série de acontecimentos um após o outro. E essa é a questão. Tem sempre alguma coisa rolando, tem sempre alguma coisa ocupando a nossa vida de casal, mas de um jeito estranho nós praticamente não conseguimos viver essa vida de casal juntas. O quão louco isso é?

-- Eu queria ter boas notícias, meninas...- suspirou. -- Mas não é exatamente o que os exames da Manu mostram... - olhei pra Rafa e ela parecia firme como uma rocha, apenas segurou minha mão mais forte e focou no médico como se mandasse ele falar logo qual era o problema. -- É importante dizer que, primeiro: você é paciente de risco pra hiperestimulação ovariana por ter menos de 30 anos e seus órgãos reprodutores e hormônios estarem funcionando plenamente. Isso acaba tornando os sintomas mais fortes e difíceis de controlar; segundo: todo essa dor abdominal que você tá sentindo é consequência do fato dos seus ovários e abdômen estarem inchados por esse excesso de líquido causado pela síndrome. Pra completar, você desenvolveu um derrame pleural, então seus pulmões também estão com esse excesso de líquido. - e olhou pra nós duas como se esperasse uma reação, mas nós só queríamos saber logo o que os exames deram. -- Bem...o fato do abdômen e dos ovários também estarem inchados, acaba dificultando o pulmão de se expandir e esse é um dos motivos que tá fazendo com que seu organismo não consiga fazer com que os pulmões recuperem suas funções plenamente, mesmo que tenhamos tirado muito líquido deles. - ele suspirou e nos olhou em atenção. -- Até aqui vocês entenderam? - assentimos quase de forma sincronizada. -- Ótimo! Porque eu expliquei essas questões? Porque preciso que vocês entendam que é majoritariamente por conta delas que o derrame pleural não foi resolvido com o procedimento de punção. - mordi o lábio. Que merda. -- O terceiro fator que influencia negativamente é que no seu caso o derrame é bilateral, o que dá mais trabalho pra recuperação do organismo. Então vamos precisar agir antes que isso possa afetar suas funções renais e piorar ainda mais o seu estado clínico. - levei a mão até o rosto. Puta que pariu

Força do Destino [Ranu]Onde histórias criam vida. Descubra agora