Embebida em Loucura

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Eu não consigo lembrar de muita coisa. As imagens invadem a minha cabeça como borrões em fragalhos. Eu lembro do gosto da fumaça, eu lembro do calor do fogo. Eu lembro de reparar no ardor da minha pele, mais avermelhada que seu tom natural.

Minha mãe me abraçou com tanta força e tanto cuidado, esse sempre foi o toque dela, cauteloso, mas eficaz, como um leopardo. Ela me olhou nos olhos, duas piscinas negras e suas palavras hoje soam como melodias infernais "você vai precisar ser forte". Eu não sei em que momento eu comecei a chorar, mas as lagrimas arranhavam meu rosto. Minha mãe me entregou aos braços de minha avó, que mal conseguia com meu peso. Os seu cabelos brancos estavam presos em longas tranças, parecidas com as que eu uso hoje, ela me colocou no chão assim que minha mãe saiu. Nos escondemos na cabana, atrás de alguns caixotes e esperamos.

Eu conseguia ouvir os gritos, os tiros, o estalar das construções ruindo. Meu mundo era pequeno e pouco explorado, mas estava se acabando.

O tempo corria, mas parecia não andar. Uma bola de angustia se instalou em minha garganta. No entardecer, quando eu pensei que o pior já havia passado, homens que eu nunca tinha visto antes, invadiram a casa. Minha vó puxou uma espingarda, mas os homens eram mais jovens e fortes do que ela. Ela gritou "Linda, fuja!" antes de seu corpo cair em minha frente. Eu nunca tinha visto um cadáver antes. Os olhos sem vida fitando o nada. A carne que antes abrigava a doçura de minha vó, agora era um amontoado de ossos. Eu fiquei imóvel. Fugir para onde? Minhas pernas não conseguiam me tirar do lugar. Porque eles estavam fazendo aquilo? Porque eu estava sendo punida? Eu era apenas uma criança.

Os homens começaram a avançar em minha direção, suas sombras ficando maiores no chão, eu lembro que o medo me sufocou e eu não conseguia sequer gritar.

Até que Tavaras ocupou lugar em minha visão.
Eu ouvi tiros para todos os lados. Os buracos das balas ainda contam histórias na parede da cabana. Os homens foram caindo um a um. Tavaras cortou a garganta daquele que estava mais perto de mim, ele me segurava pelo braço como se eu fosse um boneco de madeira. O sangue da jugular do homem esguichou para todos os lados, manchando meu vestido. Eu quis rasga-lo inteiro. Aquele cheiro de ferro embrulhou meu estomago. A cabana fedia a morte.

Depois do massacre, o barulho sessou. Tavaras estava coberta de sujeira, sua roupa em fragalhos e não dava para saber se aquele sangue era dela ou não. Porém o seu rosto era um rosto conhecido. Minha madrinha.

Ela me abraçou e eu a apertei com toda a força que eu tinha. Foi tudo que me restou. Eu não poderia lhe perder também. Achei que com os meus bracinhos em volta do seu corpo, eu poderia fazer algo, como eu não fiz por minha avó ou por mim.

Mais algumas horas se passaram e eu já sabia, antes de receber a notícia, de que meus pais não voltariam. Eu já sabia que eu seria atormentada para sempre com a culpa de crimes que não eram meus. Eu fui amaldiçoada pelos deuses.

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Meus pensamentos não me deixam focar em nada. Roubam minha atenção sempre que eu me distraio me levando de volta para aquele dia e eu, infelizmente, costumo me distrair com facilidade.

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Eu estou no alto da copa de uma arvore. A flora da ilha é farta.

Eu fico observando a cidade funcionar aqui de cima. É tudo tão igual, monótono. O padeiro começa a vender pães logo cedo, as mulheres da taberna chutam para fora os homens que não as pagaram pela noite anterior, as ovelhas se soltam, os padres brigam com os pastores e mais um dia se inicia.

Aqui do alto eu consigo ver muito mais do que eles próprios, vivendo em matilha. Passei minha vida inteira escondida entre essas arvores. Por um tempo eu tive medo da história. Medo de ser tirada da cama e arrancada de meus sonhos por homens que eu não conhecia. Tive medo de amar alguém e essa pessoa ser morta a sangue frio em frente aos meus olhos. Esses medos me assombravam enquanto eu crescia, mas depois de um tempo, eu aprendi a conviver com eles e aos poucos foram substituídos por indiferença.

Uma total e completa indiferença.

E esse sentimento de vazio implora para que eu o preencha com qualquer resquício de felicidade. Ele queima por dentro, entrelaça minhas entranhas e explode em euforia. E eu vivo em busca do improvável, do impossível, do que me foi negado. O que me foi privado. Eu quero aquilo que eu não posso ter. Eu quero a minha liberdade, liberdade essa que foi roubada de mim. Assinei uma sentença de morte, sem nem saber escrever meu nome. Eu fui punida, por pecados que não eram meus. Então deixei de acreditar na justiça divina e passei a crer em meu próprio nome.

Seja ele proferido com amor ou com desdém. Ainda assim, eu sou um marco na história.

TormentaOnde histórias criam vida. Descubra agora