CAPÍTULO 12

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Thorment passou a manhã na fábrica, mas não conseguiu trabalhar em nada. Ele não queria conversar, pois poderia contar sobre o final de semana e do desastre que foi essa manhã, ainda que não houvesse ninguém para isso. Bells, o único que talvez pudesse ouvi-lo, não foi trabalhar, Silent estava ocupado com um guarda roupa imenso, encomenda de Vengeance, e Oaks não era de conversar. Os outros praticamente não falavam. Um dos filhotes de Lash, Blade, era tão silencioso que conseguia passar totalmente despercebido. Ele estava interessado em aprender a fazer móveis para a casa deles, então, Thorment o tinha aceitado lá.
Talvez fosse uma coisa boa se ocupar o ensinando.
"Blade, o que está fazendo?"
Ele elevou seus olhos dourados para Thorment.
"Minha mãe quer uma mesa, desse modelo." Ele pegou um papel, era um recorte de revista, mostrava uma mesa redonda com um aparador rotatório por cima do tampo.
"E você começou pelo tampo? Esse tipo de mesa, talvez seria mais fácil se você começasse pela base, os pés. Ninguém ajudou você?" Ele olhou para Leaf, que balançou a cabeça como a  dizer: não me coloque nisso.
"Não. Eu tentei duas vezes e não ficou bom, eu usei aquela madeira ali." Ele apontou para a madeira de lei, a mais cara que eles tinham, que Thorment tinha separado.
Thorment respirou fundo. Não era culpa do filhote. Ele foi jogado ali, sem saber nada de como a fábrica funcionava.
"Certo. Hoje eu não vou poder, e já está quase na hora do almoço, amanhã começamos do zero, ok?" Blade sorriu, ele era parecido com Lash, mas tinha o sorriso da mãe deles, Mary.
"Trouxe comida?" Thorment perguntou. Se Candid tivesse a humildade de Blade, ele e Thorment poderiam ser amigos, assim como Simple criou laços fortes de amizade com Leo.
"Sim, no caminho pra cá, eu cacei esse coelho." Blade tirou um coelho morto da geladeira. Thorment arregalou os olhos, não estava acreditando naquilo.
Oaks riu discretamente no fundo do galpão.
"Que tal irmos para o refeitório?"
Ele franziu o nariz. Lash e Valiant eram felinos com traços mais animalescos que os Novas Espécies em geral, e Lash parecia-se mais a um leão que Valiant. Blade franziu o nariz exatamente como os pestinhas dos trigêmeos faziam.
"Eu limpo e o preparo bem rápido, Thorment. Ele é gordo, posso te dar um pedaço." Ele disse já pegando uma faca e tirando o pelo do coelho. Thorment deu de ombros, por que não? Ele tinha sido manipulado por um filhote da pior maneira, ser alimentado por outro não seria tão ruim em comparação.
Blade fez uma fogueira nos fundos, espetou as partes do coelho e assou. O cheiro de carne assada encheu o galpão, os outros se aproximaram.
"Não tem carne pra todo mundo, então dêem o fora." Thorment disse.
"Amanhã trarei pelo menos uns cinco, pessoal." Blade disse sorrindo. Thorment pensou que aquele sim, era um filhote que merecia estar ali.
O coelho assou, Blade deu a maior parte para Thorment e ele não aceitou.
"Não. Eu só quero provar." Ele pegou seu prato e virou a maior parte no prato de Blade.
"Candid não vai voltar?" Blade perguntou. Thorment balançou a cabeça. Não, mil vezes não, ele pensou.
"Estranho. Ele lhe trouxe uma fêmea. E você está totalmente tomado pelo cheiro dela, pensei que nem viria hoje. Não ficou feliz?"
"O que acha estranho? E como sabe que ele me trouxe uma fêmea?" Thorment mastigou a carne e suspirou, muito gostosa. E ele se lembrou da torta de carne, da carne assada, das panquecas e do bolo que Marlena cozinhou para ele no final de semana. Ela tinha de cozinhar tão bem?
"Dagger e Boon o pararam quando ele entrava com ela no nosso território. Ele disse que a estava levando para você. Como eu estou feliz trabalhando aqui, eles o deixaram passar." Thorment imaginou Candid lutando com Dagger e Boon. Ele não conseguia não pensar que Candid acabaria com eles. Os filhotes de Lash eram bons, tinham um coração puro. Eram os típicos 'rosna, mas não morde'. Já Candid era cruel. E lutaria sujo se precisasse.
Thorment ligou para o refeitório pedindo comida, a carne de coelho só o deixou mais faminto.
"Eu vou na cidade, Blade, quer ir?" Ele arregalou os olhos.
"Na cidade? Eu não sei, nunca fui na cidade." Thorment sorriu.
"Mas vai ter de vestir uma camiseta e sandálias, no mínimo." Blade usava uma bermuda e só. Thorment se lembrou dele chegando de cueca box em seu primeiro dia. Foi Candid que lhe trouxe roupas. Ele sorriu e acenou.
Ele não tinha nada para fazer na cidade. Os livros que comprou na sexta ainda estavam intocados e Marlena tinha até pegado um, com sua sorte, provavelmente seria o que ele estava ansioso para ler, pois fazia parte de uma série. Ou talvez não, ele não prestou atenção quando ela lhe estendeu o livro.
Ele levaria Blade na livraria, talvez ele gostasse de ler.
Foi um desastre, porém. Thorment pensou quando entrou na livraria. Blade estava tenso e seu faro apurado, o deixava nervoso. Eles desceram do jipe no centro, Thorment queria mostrar a Blade a cidade. Blade rosnou e até rugiu para um ou outro cidadão. Thorment entrou na livraria mais para o esconder que comprar livros.
"Olá." A atendente, a fêmea bonita que cheirava bem olhou para Blade cheirando os livros e sorriu. Ele a encarou e deu um passo para trás.
"Calma. Essa é..." Thorment não sabia o nome dela, então a olhou interrogativamente.
"Pam. E seu amigo?" Ela sorriu para Blade, ele franziu o nariz.
"Blade. Eu o trouxe para conhecer a cidade."
Ela aumentou o sorriso, mas Blade manteve distância.
"E gostou?" Ele balançou a cabeça dizendo não.
Thorment procurou o livro que ele pensou estar com Marlena. Se estivesse, ela não ia devolver, então, resolveu comprar.
"Já comprou esse. Essas histórias são tão iguais que você se confundiu?" Ela brincou.
"Eu o dei a uma amiga." Ela ergueu as sobrancelhas, cética.
"Certo. E você, Blade não vai querer nada?" Blade inspirou e olhou confuso para Thorment.
"Tio V. vem aqui? Veio hoje?" Ele perguntou para ela.
"Quem?" Ela perguntou para Thorment. Havia uma luzinha de alerta nos olhos dela.
"Vengeance. O conhece?"
"Não. Mas estou aqui a pouco tempo." Ela deu de ombros.
"Vai querer algum livro, Blade? Pra sua mãe, talvez?" O filhote abriu um sorriso imenso.
"Minha mãe gosta de ler." Ele pegou um livro grosso com um casal na capa.
"Esse livro é uma história de amor?" Ele perguntou, Pam sorriu.
"Sim, é um clássico. Nada de história água com açúcar nesse aí." Ela sorriu maliciosa.
"Eu não trouxe dinheiro, Thorment, mas você pode descontar do meu salário." Ele disse. Thorment pagou os livros e eles se foram.
Thorment não pode não pensar no que Blade queria dizer com salário. Os móveis eram encomendandos e quem os fazia recebia o valor do móvel, pagava o material e ficava com o resto. Blade não tinha feito nenhum móvel ainda. E estava fazendo para sua própria casa, seu pai pagaria alguma coisa? Lash e dinheiro eram duas coisas difíceis de imaginar juntas.
O filhote, porém, estava tão animado em dar um presente a sua mãe, que Thorment ficou sem jeito de perguntar de que salário ele estava falando. Pam fez um embrulho bonito, com um papel rosa, o filhote disse que até o embrulho parecia um presente.
E ele estava tão ansioso que quando voltaram, ele perguntou:
"Posso deixar a limpeza para amanhã? Eu estou doido para entregar isso para a mamãe."
"Limpeza?" Thorment perguntou.
"Sim, como ainda não sei fazer móveis e não tenho nada para vender, eu limpo tudo, principalmente as ferramentas, separo o material que pode ser reaproveitado, corto as madeiras maiores em ripas, essas coisas.  Não ter que limpar o local, dá aos outros  mais tempo útil. Eu trabalharei dobrado amanhã, eu juro!" Thorment sorriu, esse filhote era uma grata surpresa. E a idéia dele auxiliar os outros limpando e preparando as ferramentas era muito boa.
"É claro que pode ir. E não descontarei o livro de seu salário. Sua mãe merece." Ele aumentou o sorriso.
"Obrigado, até amanhã."
Ele tirou a camiseta e as sandálias, e correu para o fundo do galpão. De lá depois de colocar a camisa num cesto e guardar as sandálias, saiu em disparada. Era uma grande distância, mas ele chegaria mais rápido do que se fosse de jipe.
"De quem foi a idéia de colocá-lo para agilizar as coisas?" Thorment perguntou para Silent.
"De Candid, oras!" Silent bufou.
"Ele ficava pra lá e pra cá, sem ter o que fazer, Candid o colocou como auxiliar." Thorment sentiu a raiva subir por seu corpo. Aquele filhote!
"E não pense em mexer na escala que ele fez da Serra circular. Acabou com nosso problema de pequenos cortes." Oaks disse do fundo do galpão, Leaf fez um som concordando.
"Na verdade, ele está fazendo falta, quando ele volta?" Silent perguntou. Eles eram unha e carne, Thorment até estranhou Silent não ter perguntado antes.
"Ele não volta. Eu o demiti."
"E as madeiras nobres que ele comprou?" Leaf veio segurando um pedaço de mogno.
"Essas madeiras não são dele, são..." Thorment se esforçou para se lembrar da data em que essas madeiras tinham sido encomendadas. Deus! Que porra! Ele só conseguia pensar que a madeira avermelhada tinha a cor do cabelo de Marlena.
"São. E se ele foi demitido, pode mandar buscá-las, eu fiz um conjunto de jantar com elas, só falta entregar. E foi para fora. Como vai resolver isso?" Leaf disse quase mostrando as presas.
"Eu vou ver com ele." Thorment iria. Naquele mesmo dia.
"Faça isso. Há prazo de entrega." Ele se virou e foi para os fundos.
"Candid deve estar no zoológico. Tio Valiant e tia Tammy iam visitar a Faith." Thorment acenou e voltou ao jipe. Quando Candid se meteu nos assuntos da fábrica de tal forma? E como ele não viu?
O zoológico não estava a vista, mas Thorment já sentia o cheiro de Marlena. E o assunto das madeiras fugiu totalmente de sua mente. Ela estava a direita, havia cheiro de animais também, deveria estar olhando os animais. No caso, o canguru.
Ele desceu do jipe e veio se aproximando devagar. Ela conversava com um filhote humano, seria o filhote dela?
"E quando o bebê canguru nasce, ele ainda fica por um bom tempo na bolsa de sua mãe."
"Esse daí é macho, o melhor que ele faz é desmaiar os filhotes." Sheer que também estava sentado no banco em frente a jaula do canguru disse.
"Como assim?" Marlena perguntou. De onde estava, ele podia ver os olhos dela, interessados em Sheer. E havia carinho neles.
"É uma aposta. Um filhote, no seu aniversário, tem de tomar um tanto de cerveja e entrar na jaula do canguru. Não pode bater nele, é claro, só pode desviar dos socos e chutes. E tem uma marca no chão, também, e não pode sair da marca. Quem ficar mais tempo é o vencedor. Ainda demora muito pra mim!" Ela riu, o som cristalino enchendo seus ouvidos.
"Isso é a maior idiotice que eu já ouvi!" Sheer deu de ombros.
"O recorde é do tio James. Mas quando meus tios fizerem dez anos, vão tentar tirar o recorde dele. Já tem gente apostando, eles vão fazer dez em dezembro." Sheer disse. Ele virou a cabeça, viu Thorment e sorriu. É claro que o faro dele seria muito bom.
"Oi, tio." Thorment não era chamado de tio. Para ser chamado assim, teria de ser muito amigo do pai do filhote e ele não era muito próximo de ninguém. Mas sorriu quando o filhote de Pride lhe concedeu essa honra. Ele se aproximou, Sheer pulou nele e Thorment quase o deixou cair.
"Estou torcendo pra dar tudo certo." Ele sussurrou no ouvido de Thorment e sorriu travesso.
"Vamos Enrico, vamos ver os gatos selvagens das minhas tias!" Ele saiu puxando o filhote humano. Antes de sair, porém, o filhote, Enrico, olhou para Thorment, seus olhos nada amigáveis.
"Oi." Ele se sentou.
Ela não respondeu. Era teimosa, essa fêmea. Thorment não tinha feito nada demais.
"Eu ainda não fui conversar com Slade, mas Tammy me ofereceu ficar na casa dela, até saber onde vou morar. Amanhã, alguém buscará as minhas coisas."
"Suas coisas não me interessam." Ela parecia pensar que ele se importava com as roupas e coisas dela na cabana de Hills.
"Não estão na minha cabana." Ela franziu as sobrancelhas.
"É claro, que bobeira a minha pensar que você pensaria em mim, não é?" A voz dela estava dura.
"Eu penso em você. Todos os malditos minutos do dia." Ele segurou o queixo dela. Ela não afastou o rosto.
"Seus olhos são da cor do âmbar. Seus cabelos da cor do mogno escuro. Duas coisas muito raras." Ele não queria parecer um idiota romântico, mas era uma verdade, os olhos e cabelos dela o lembravam essas coisas, coisas com as quais  ele gostava de trabalhar.
E a boca? Thorment tomou os lábios dela, sem dar chance dela o afastar. Estava sedento, as poucas horas que estiveram separados, cobraram seu preço.
Ela se deixou beijar e isso acendeu uma luzinha de esperança no coração de Thorment. Talvez essa noite ele a teria em seus braços, suada e satisfeita. E dormiriam abraçados.
"Thorment." A voz de Candid o atormentava até ali!
"Silent me ligou. Há um problema com a madeira?" Ele perguntou, muito cheio de si, e isso irou Thorment.
"Agora não." Marlena, porém aproveitou que ele deixou sua boca e se desvencilhou dos braços de Thorment.
"Eu vou ver Enrico e Sheer. Com licença." Ela não sairia assim, mas não mesmo.
"Não. Eu quero falar com você e não quero falar com ele. Vá embora, Candid."
Ele não queria propriamente falar com ela, a intenção era que ela se sentasse sobre o pau duro dele.
"Você não pode ter tudo o que quer, nunca te ensinaram isso?" Ela saiu andando. Thorment se levantou, não a deixaria com a última palavra.
Mas Candid sussurrou:
"Isso mesmo, seja um idiota troglodita e a perca. Ou seja esperto e a conquiste." Thorment o encarou. Ele tinha aquela carinha de espertinho e o sorriso debochado na boca. Mas Thorment via quando estava errado. Se continuasse discutindo com ela, poderia piorar as coisas.
"A madeira?" O pirralho perguntou.
"O mogno escuro. Você comprou?" Com que dinheiro seria a próxima pergunta.
"Não, fiz uma permuta. Há muito interesse por sobras de madeira, principalmente das nossas árvores. A madeireira fica com os restos cortados em ripas e a madeira nobre sai mais barata. Na venda, pagamos o resto." Filho da...! As áreas de reflorestamento estavam quase no ponto de corte. Esse contrato renderia muita madeira nobre, fora a madeira boa das árvores deles.
"Quando fez esse acordo? E em nome de quem?"
"Do tio Justice, de quem mais?" Thorment rosnou. Era a tal modernização e ampliação de que ele sempre falava.
"Não temos como produzir tanto, não temos trabalhadores suficientes nem espaço." Muitas vezes, antes de fazer um móvel, eles iam na floresta escolher a árvore, tal era rudimentar o trabalho deles. E estavam bem assim.
Candid suspirou.
"Basta fazer a última entrega e pagar a diferença. Os contratos não são de longo prazo." Ele parecia que sabia que Thorment ia acabar com tudo.
"Agora, quanto a Marlena, eu seria mais gentil se fosse você." Ele disse.
"Mas não é. Vocês tem um contrato? Quanto está pagando?" Thorment não ia mais aceitar nada daquele filhote.
Ele sorriu, mostrando as presas, como se estivesse muito satisfeito.
"Nada." Thorment não entendeu.
"O quê?" Como assim?
"Você parece pensar que ela é uma prostituta, e se está é o maior idiota que essa Reserva já viu." Ele disse e correu. Esperto, por que Thorment iria socar a boca dele até quebrar alguns dentes.
Ele rosnou de frustração. Apoiou a cabeça nas grades frias da jaula. Deus! O que fez para que aquele filhote aprontasse tanto com ele? Não teve resposta porém. O canguru apareceu do nada e lhe deu um soco muito bem dado na cabeça, Thorment aguentou a dor, mas não pode impedir seu corpo de cair como uma árvore para trás, bater a cabeça numa pedra e desmaiar.

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