Capítulo 23.5° - A mãe não se importa conosco

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A fome de deus - receptáculo



Eu sou a fome da mãe. Eu como e sei. Os humanos chamam os progenitores de onde escoem de mãe. Eles também divergem, às vezes no sabor do saquê que preferem, nome aos quais respondem, opinião sobre pesca e plantio, a estação favorita entre a chuvosa e a limpa e tanto além. Concordam acerca de quem detém a autoridade na metrópole, o que são canecas e o perigo de bestas e tanto mais. São uma manada irregular de feras sedentas, seja por ascensão social ou autoaperfeiçoamento, cumprir deveres ou aproveitar prazeres ou fugir de dores.

Eu sou a fome da mãe, meu estômago se contorce sob o dissolver da carne do último humano que comi, Yashiro, um carpinteiro que acabara de ter uma filha e amava a esposa. Ele machucava as mãos regularmente ao cortar, martelar e levantar madeira. Os magos zombavam dele quando o viam seguir para casa ou ir ao trabalho, os jogos de palavras de sua mulher o faziam sorrir.

Eu como e sei, posso falar e pensar e vivi a vida e morte de mil humanos, devorei a minha própria carne mil vezes e fui destroçado por dentes ferozes em igual quantia. Meus pés são enormes e dotados de duas pontas aguçadas, minhas mãos são grandes e dela três grossos dedos despontam. Saliva atravessa o tênue espaço entre meus caninos e cai rubra da refeição no solo abaixo de mim.

Caminho sobre uma trilha de pedra, Roma, os humanos a chamam. A estrada é ladeada por lama e poças, os ventos são frios e insetos alados pousam nos minúsculos lagos um após o outro. Uma criança humana cambaleia às minhas costas, Sara, filha de um andarilho licantropo com Misato da banca de peixes. Quatro anos, forrada em peles e seguindo a criatura alva com um rombo onde uma pessoa teria o estômago. No buraco paira flutuando uma esfera escura que não estava lá quando nasci há três dias atrás assim como eu não andava sobre duas patas... pernas.

Sigo para o sul. Alguns humanos conhecem histórias sobre como todos os demônios e monstros vem do sul. Estão errados, todos vem da mãe. Paro. O som do encontro do rosto da criança com o chão chega aos meus ouvidos. Ela chora. A ergo sobre minha mão e carrego-a desse modo. A menina está gélida e com as narinas congestionadas, irá morrer em breve. A devorarei pouco antes de seu último momento.

Minha pele é repleta de pelos pálidos e meus olhos são esferas lilases e brilhantes. Prometi não devorar mais ninguém, pois a vida perdida se torna minha vida perdida. Mas o sentimento de vazio no meu estômago cresce dolorosamente e essa resolução moral enfraquece.

Sou a casca da mãe. Ela usará meu corpo e criará algo novo sobre as cinzas do velho, ela não gosta do que suas crias se tornaram... por nenhum motivo em particular, ela só quer ver algo diferente.

A mãe não se importa conosco.

A Queda das EspadasOnde histórias criam vida. Descubra agora