Capítulo 25° - Uma moeda para o alto e o torcer para que caia coroa

4 0 0
                                    


Mommy



— É sua culpa - o velho sentado em uma poltrona cinza na varanda e fitando os destroços de residências, os cadáveres e as carroças onde eram atirados.

— Hum? — o sorriso dela se alargou meio milímetro, as íris foram a face lupina. — Se refere a algum dos recentes problemas em particular, moleque?

— A todos.

Ela chegou muito perto de rir, a ameaça de fazê-lo pairou no ligeiro semicerrar das pálpebras e no quase imperceptível subir do centro dos lábios. Era uma acusação absurda. Alguém poderia manipular uma cidade a ir a garganta de outra, talvez fosse capaz de pôr um garoto humano a tropeçar no livro da velha Necron e um grupo de elfos a marchar ao encontro dele, mas acordar uma deusa e fazê-la seguir a onde quer que seja sob a pseudo onisciência dela? Soa ridículo, embora o tipo de ridículo que anda na borda entre lucidez e loucura pelo mero acaso de, nesta ocasião, ser factual.

— Por que acha isso? — perguntou.

O olho amarelado rumou ao dela.

— Alguma vez, nesse continente, houve um desastre em que não tivesse o braço enfiado até o cotovelo, Ea?

A mulher voltou a encarar a carroça se arrastando na via abaixo. O veículo estava entupido de corpos mortos e era puxado por dois bois.

— E? — o tom frio. — Eu, você, eles... o passar de horas. ''Pouco importa como o ceifador chega, ele apenas o faz. Escondam-se, corram, tanto faz'' disse um deles não muito menos que trinta anos antes de morrer sob a mera progressão dos dias.

— Muita gente perdeu tudo.

Se apoiou no curto muro da varanda e descansou a bochecha em um dos punhos. O ar era quente e tinha resquícios do cheiro de suor mesclado ao da podridão dos cadáveres. Um odor horrendo que põe o estômago a lutar contra o impulso de regurgitar. Um odor que é como as pobres criaturas perenes ali embaixo, que com tão pouco tempo ainda matam, traem, ofendem e roubam umas às outras. Sem os séculos de habituação eu vomitaria minhas entranhas e choraria de joelhos.

— Um desfecho comum.

Um dos bois empacou e o condutor desceu, começou a falar com o animal enquanto outras carroças desviavam e seguiam caminho. Corvos manchavam os céus como pontos escuros que mergulham rumo aos mortos e se afastam sob a aproximação de pessoas.

— Os tirou o que tinham muito mais rápido do que mereciam.

Sim. Eles ganharam uma chance de estarem vivos e acabei encurtando-a. Sinto que devo um pedido de desculpas, mas os prejudicados servem de banquete a pássaros de penas escuras e seus ouvidos já não ouvem mais coisa alguma.

Deu de ombros. Fizesse o que fizesse eles não durariam.

— Talvez sirva de consolo dizer que a divindade da vida não fará muito mais.

— E por quê? — o velho licantropo, Enzo, que era um dos três a liderar Semiramis, com hostilidade o tocando o timbre desde sua acusação.

Ela ergueu o braço direito acima com o dedo indicador ereto.

— Um antigo conhecido fez uma gracinha há mais tempo do que você é vivo, essa ilha está sob uma maldição complexa. Nada pode deixar nosso pequeno continente, como os registros de expedições a mais de treze quilômetros da costa devem ter lhe mostrado em algum momento. Bom, nada exceto dragões, mas nenhum teste com eles me trouxe qualquer resultado relevante.

Silêncio entre os dois rodeado pela balbúrdia nas ruas que se desenhavam abaixo. O sol começava a arder contra a pele.

— Isso é...

— Um resumo rápido. Foi um projeto que nos levou treze anos, em minha defesa não achei que eu acabaria aqui.

Ergueu o tronco, os braços e bocejou. Não dormia há sete dias em meio ao pôr de pessoas e feras onde precisava que estivessem.

— E a deusa?

Fechou a boca, virou o rosto de lado e o encarou de soslaio, a íris laranja feita quase dourada sob o toque da manhã.

— Dada a natureza da maldição, provavelmente uma das duas, deusa ou magia complexa, quem sabe ambas, se verá destruída. Com sorte pelo menos a primeira. Onipresença e tudo que isso implica por pô-la onde limites foram traçados... e por ter tido seu ponto de ressurgimento bem perto do núcleo da maldição antes de se reacostamar com a própria forma completa.

O velho expirou audivelmente e o lábio lupino teve a extremidade a pender a baixo.

— Sorte. Isso é algo no qual não gostaria de pôr o destino do meu povo sobre.

Girou na direção de Enzo e sentou na amurada da varanda. Que seja. Soltou um curto ''rá'' e a cabeça pendeu rumo ao céu. Estou livre. Fechou os olhos, a sensação lentamente a encontrava. Era como se de repente os horizontes houvessem ficado mais distantes e o espaço até eles dotados de mais vida. Mas nada mudou ainda, não sou capaz de impedir que aconteça de novo. Abriu os olhos.

— Você permite a Ouroboros na sua terra. Que tipo de sujeito mantém uma besta assim andando entre suas ovelhas se não aquele que atira moedas para o alto e torce para que caia coroa? Pode ser mais velho que todas essas crianças, mas ainda é um pirralho catarrento de onde eu me ergo — pôs-se de pé e andou para dentro do cômodo. — Espero ter feito minha boa ação ao sanar suas preocupações. Volte a brincar de pastor se o agrada.

— Posso ordenar sua prisão e execução pelo que fez.

Parou, estava a três passos além do limiar do escritório para varanda. Não tinha paciência para distrações bobas, não agora quando poderia deixar essa ilha depois de setecentos e setenta e sete anos de reclusão forçada.

— Sinta-se livre para fazê-lo, mas o matarei se chegar a isso.

Não houve resposta e ela continuou o trajeto para fora do edifício. 

A Queda das EspadasOnde histórias criam vida. Descubra agora