Cap. 2 - O Peregrino Permanente

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É a primeira vez em anos que ando na rua procurando por alfas. Geralmente, na minha condição de ômega, eu sou o procurado. Antes, eu fazia isso em festas junto dos meus antigos amigos - que se afastaram de mim depois que fui demitido -, só por diversão, encontrar alguém com quem passar uma noite sem preocupações. Agora é questão de sobrevivência. Nada de alfas, só betas. Não posso transar com um beta.

As chances de gravidez para um ômega masculino são baixas só pelo fato de ser homem. Com quem nos relacionamos interfere nesta taxa. Betas abaixam, alfas aumentam. Ando olhando para dentro de becos, dos fundos das casas, para a outra margem e dentro da rua-rio, verificando se algum barco passa com uma alma solitária, mas só vejo os táxis aquáticos levando pessoas para longe da chuva antes que seja tarde demais. Tenho que ser rápido e sair do alcance do rio antes da tempestade chegar, do contrário, serei uma vítima fácil para a outra raça da minha espécie.

Eu digo a você com todas as letras: pior do que um alfa humano é um alfa peixe, embora eu nunca tenha estado com um.

-A canoa virou, por deixar ela virar, foi por causa de um menino que não soube remar... - eu cantarolava para lidar melhor com o frio da chuva. Com as roupas precárias que eu visto e o fiapo de saúde que me resta, serei um homem de muita sorte se não acordar me queimando de febre amanhã e com uma pneumonia prestes a me sufocar. - Se eu fosse um peixinho e soubesse nadar, tirava a canoa lá do fundo do mar. - cantava baixo para não atrair a atenção de nenhum ser desagradável, seja este homem, oficial ou peixe.

Andei por seis quarteirões próximos à minha casa, esquadrinhando suas vielas, até que distingui um som que não fosse os trovões distantes e os estalos dos pingos de chuva batendo nas calhes, nas ruas-rio e nas pontes de madeira arrajandas de qualquer jeito. É um dos ruídos mais familiares neste Subúrbio, sobretudo a esta hora da noite: eu reconheço o som de uma briga violenta. Com mais cautela do que nunca, andei por mais um quarteirão, atravessei uma ponte instável por cima do esgoto aberto e segui por uma viela de tábuas que leva à quadra pública onde os moleques gostam de jogar bola à tardinha.

Ocasionalmente, na madrugada, os moradores usam a quadra a esta hora para festas clandestinas com direito à bebedeira e drogas, ou assume a função de coliseu para as gangues resolverem suas desavenças particulares - até parece que nesse mundinho de merda não existiriam comunidades deste estilo, como gangues e grupos criminosos.

Em tempos assim, os limites da violência nunca estão delimitados.

Em tempos assim, quando as linguagens racionais perdem o seu valor, este código ainda permanece funcionando.

Mesmo sem minha licença médica, todos os dias aparecem pessoas na minha porta pedindo por cuidados e os que possuem ferimentos bem feios, eu já sei que são frutos de uma briga no coliseu. Testa cortada, olho "derramado", queixo ferido, faltando dente, hematoma do tamanho de um limão do Taiti, braço ou perna quebrada, hemorragia interna e por aí vai. Para baixo. Só piora e confesso que estou dormente a esta violência. Cheguei ao quarteirão da quadra pública e a luta se escancara diante dos meus olhos, sob a chuva aumentando a cada minuto. Fico escondido atrás de um fedorento latão de lixo, observando os dois grupos de poucos membros se enfrentando como acontece quando matilhas disputam um mesmo território.

Deve ser coisa do tráfico.

Eles estão sempre disputando território.

Ou disputando pontos específicos para terem vantagens sobre a Força Alpha, afinal, qual é a melhor época para a criminalidade prosperar do que aquela em que o governo falha? - eu desconheço outro momento.

Vocês devem se questionar por que eu estou aqui, assistindo, correndo o risco de ser pego por uma das gangues e morto. Ainda mais levando em conta que carrego a responsabilidade de salvar os meus depois das merdas que fiz. Tenho uma boa razão. É boa mesmo. Há cinco anos guardo dinheiro para enviar quem eu puder da minha família para fora de Púnia. Sei de países que estão acolhendo os fugitivos e lá, há uma vida bem melhor do que esta - bem menos miserável e humilhante, pelo menos.

Durante a ChuvaOnde histórias criam vida. Descubra agora