Cap. 21 - Réquiem para um Pesadelo

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Eu devia ter uns cinco anos ou mais.

Não tenho certeza.

Estava na praia com a minha família, fomos curtir um fim de semana após uns longos meses de trabalho, segundo disseram a mim depois. Eu sempre fui afoito. Sempre fui de atravessar os meus limites sem dar-me conta de que fazia isso e que as consequências podem ser ruins no futuro.

Agora sou consciente dessas coisas, mas eu era criança, achava que o mundo era parecido com os desenhos animados, que os perigos eram menores do que de fato são. Não sei como explicar direito o que se passava naquela época na minha cabeça, mas eu ouvi uma voz me chamando das ondas. Ela me pareceu familiar, embora eu nunca tenha ouvido antes, por isso eu fui. Fui até as ondas e entrei, confiante de que não havia nada de errado numa voz sussurrando o meu nome. Eu lembrava que nas animações que eu assistia, os meus personagens entravam na água e magicamente uma redoma aparecia ao redor das suas cabeças ou se transformavam em peixes.

Eu supunha que o mesmo aconteceria comigo, por isso continuei caminhando sozinho, largando meus brinquedos de praia e o castelinho que eu tentava construir. Ninguém me olhava, meu irmão mais velho estava de "paquera" com algumas garotas que apareceram por lá e meus pais pareciam ocupados demais bebendo e se divertindo. Avancei sem preocupações. A certa altura, quando as ondas tocavam os meus joelhos, a voz cantava, embalando-me de maneira que hoje eu posso dizer como hipnótica. As ondas levavam-me mais rápido do que os meus pés acompanhavam e num instante, me vi completamente submerso, a superfície estava tão longe que o sol parecia uma pálida lua, fantasmagórica, e eu continuava caindo.

Olhei para baixo e vi algas longas emergindo das sombras, movendo junto das ondulações daquelas águas turvas e muito azuis. Elas se enroscavam em mim, puxavam com força para baixo, para a escuridão. O ar me faltou. Tive medo, muito medo. Aquelas coisas verdes se tornaram tentáculos pegajosos com ventosas e espinhos quando um raio fez tudo se iluminar ao meu redor. Eu petrifiquei de tal maneira que já não me sentia, o ambiente escurecia e girava em alta velocidade.

Um par de olhos se abriu no centro daquele redemoinho.

Não me lembro como eles eram, mas sei que estavam lá, junto de uma pálida mão estendida para mim, pálida como a lua, de dedos longos com membranas e garras negras.

Foi quando as mãos do meu pai me puxaram daquela infinitude estranha. Quando emergi, meus pulmões doeram por respirar o ar seco e eu enfim gritei. Não consegui falar o que eu vivi naqueles segundos em que estive submerso, afogando-me - segundo meu pai - até completar quinze anos. Meu terapeuta dissera que fora um sonho, aliás, uma alucinação criada pela minha mente.

Para me proteger.

De quê, sempre me questionei, e como? Enviando-me para um pesadelo ainda pior que a ideia de estar se afogando? Nunca mencionei tal coisa a ninguém. Chamariam de louco. Eu me vi como tal por muitos anos, até que eu fosse capaz de não mais sentir os tentáculos e a sensação sufocante no meu peito, até que tudo realmente não passasse de um pesadelo. Porém, o estrago fora feito.

Eu não conseguia entrar em nenhum local com tanta água que eu não pudesse ver o fundo ou que os meus pés não tocassem o piso - meu corpo inteiro travava só de chegar numa piscina escura.

Com a idade, a terapia e outras preocupações enchendo a minha mente, consegui avançar uns metros no mar, nadar em piscinas e até entrar em açudes, mas depois do golpe e dos submarinos vivendo nas ruas-rio, meus traumas e pesadelos voltaram com força total.

Eu sabia que era verdade, eu sabia que haviam monstros me espreitando na escuridão, só nunca entendi por que eles me perseguiam, o que querem de mim, por que me escolheram.

Durante a ChuvaOnde histórias criam vida. Descubra agora