Salvador - Brasil - 2014 d.C.
Eu acordei desconfortável, dormir no sofá não tinha ajudado muito, me lembro de ter sonhado com alguma coisa, um homem careca com uma coleira de metal no pescoço, e o homem desaparecia, coisa de doido. Abri os olhos e olhei ao meu redor, a pequena sala estava completamente bagunçada, parecia até uma casa abandonada, havia peças de roupa pelo chão, pontas de cigarro e revistas velhas também, o sofá em que eu estava era o único móvel além de um hack empoeirado e cheio de livros também empoeirados, em cima do hack uma TV velha que não funcionava mais, mas estava ali como parte da "decoração".
Me levantei com as costas doendo e me arrastei para o banheiro que estava a dois passos, a casa era na verdade um quarto e sala de três metros por cinco, basicamente um ovo, antes de entrar no banheiro parei e olhei para o quarto, que só cabia a cama de casal, em cima da cama e de um lado havia um amontoado de roupas bagunçadas, do outro minha irmã mais velha estava jogada, dopada, ao seu lado uma seringa vazia denunciava que ela estava drogada, senti uma pontada de tristeza, tentei aconselhá-la muitas vezes, até leva-la a um centro de recuperação mas não adiantou, depois que nossa mãe morreu há alguns anos ela havia desistido da vida, nunca conhecemos nosso pai, a única coisa que tínhamos além de um ao outro era aquele velho barraco no bairro de São Cristóvão na cidade de Salvador. Levantei os olhos para aquelas paredes sem reboco, no teto as telhas Eternit® cinza estavam sujas e havia algumas teias de aranha, a realidade era dura, nós éramos pobres, eu tremia só de imaginar o que minha irmã precisou fazer para pagar a droga que consumia.
Ela se chamava Gabriela, todos a conheciam como Gabi, ela costumava ser muito alegre, tinha dezenove anos, era negra e muito bonita, costumava ter um corpo escultural, cabelos muito longos e era admirada por todos e cobiçada pelos garotos do bairro. Até que um dia nossa mãe faleceu, acometida de câncer de estômago, não durou nem três meses, nós desconfiávamos que ela escondia a dor que sentia para continuar trabalhando e sustentando a casa, quando foi diagnosticada não havia nada a ser feito. Gabi nunca mais foi a mesma, saía sem hora para voltar, não me dizia aonde ia, deixou a escola e começou a fumar com os novos amigos, de repente começou a emagrecer, quase nunca sorria, somente o cabelo permanecia o mesmo, como que um lembrete da pessoa que ela era antes, quando eu soube ela estava viciada em crack, em pouco tempo experimentou e se viciou em heroína e eu não consegui impedir, fui incapaz de ajudar minha irmã.
Meu nome é Miguel Santos, quando enfim entrei no banheiro, que mal me cabia dentro, lavei o rosto e me olhei no espelho, um rapaz negro e magricela me olhava de volta, meu cabelo estava cortado bem curto, eu não podia me dar ao luxo de gastar com shampoo e outros produtos para manter algum penteado, eu tinha um metro e setenta de altura e olhos bem escuros. Entrei no quarto procurando algo para comer, mas eu sabia que não havia nada, apenas um pequeno pacote de biscoito entre as peças de roupa, a embalagem colorida e chamativa anunciava o peso líquido: 125 gramas. Eu fui para a sala e comi com esperança que aquilo fosse o suficiente para me sustentar o dia todo. Olhei para o calendário, era dia doze de agosto, meu aniversário de dezessete anos, mas eu duvidava que alguém se lembraria, eu não tinha amigos, nem mesmo no colégio. Quando me lembrei do colégio imediatamente olhei para o relógio, droga, eu estava atrasado.
Terminei de engolir o pequeno pacote de biscoito e voltei pro quarto jogando toda roupa pra cima procurando minha farda, eu estudava do outro lado da cidade e a viagem demorava bastante, se não saísse imediatamente perderia o primeiro horário, vesti a roupa apressado, tomaria banho de noite quando voltasse, reuni o pouco material escolar que eu possuía e dei um beijo de despedida na testa de minha irmã, correndo logo em seguida pela porta rumo ao ponto de ônibus, mal sabia eu que não a veria por um longo tempo.
Corri pela rua recém-asfaltada, algumas pessoas caminhavam na mesma direção, todas iam apressadas também, aquele bairro era considerado violento e perigoso, duzentos metros e duas esquinas depois eu cheguei a um ponto de ônibus, ironicamente próximo a um colégio chamado "Helena Mateus", minha irmã havia perguntado por que eu não estudava ali que era mais perto, mas eu preferia meu colégio atual, o Thalles de Azevedo era perto da praia onde gostava de caminhar às vezes, e tinha uma biblioteca razoável, onde passava o pouco tempo livre que tinha. Geralmente eu passava as tardes no bairro do comércio engraxando sapatos até tarde da noite, era o único sustento que eu possuía.
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O círculo da realidade
Science FictionMiguel é um garoto pobre da cidade de Salvador BA, no dia do seu aniversário de dezessete anos ele é recrutado para um grupo de adolescentes com habilidades especiais com uma missão impossível: mudar a história e salvar o futuro da humanidade. Lider...