Peça por peça

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O dia mal começara, meus pais não voltariam a olhar em minha face tão cedo, assim permanecia com aquele aperto no peito, recheado de incógnitas pelo que deveria ter acontecido exatamente. Não gostaria de preocupar Lancelot por agora e engoli as palavras.

Um estrondo vindo dos céus. O Sol resolveu esconder-se. Mesmo chovendo forte, Shadow terminou de fazer o café para mim e saiu para alimentar os cavalos como de costume.

– Quero ir ver Garanhão também – pedi. Ele sorriu reproduzindo um cafuné sobre minha cabeça:

– Você ainda está débil, pode acabar pegando um resfriado.

– Ok...

– Me espere na biblioteca – olhei-o curioso – Vamos ver como está seu xadrez, já faz um tempo que não jogamos – assenti corado, achando que diria outra coisa.

Peguei os recipientes e biscoitos, dirigindo-me ao local mais silencioso do palácio. Deixei tudo sobre uma pequena mesa ao lado da que compunha o tabuleiro levemente empoeirado. Comecei a comer quando ouvi o som da porta serrando-se. Lancelot chegara, tomando o lugar à minha frente e segurando sua xícara enquanto fitava-me. Ele sempre sentava-se do lado em que as pretas permaneciam posicionadas.

– Eu posso... – ele assentiu. As peças brancas eram as que sempre davam início a uma partida.

Movi um peão de uma das extremidades duas casas à frente, bem concentrado, mesmo que não houvesse tanto o que pensar de início. Mas então arrepiei quando algo frio tocou minha perna, era a sola de seu tênis prateado por debaixo da mesa. Meus olhos que estavam no jogo voltaram-se ligeiros para o cavaleiro, que continuava com a expressão indiferente desde que chegara. Claramente tentava me provocar, e funcionara. Com os espinhos umedecidos pela chuva, assoprando o líquido escuro e amargo, acabara perdendo-me por alguns segundos em seus lábios.

– Hum... – analisou meu peão e deu de ombros, largando a xícara de lado, inclinando-se para pegar uma peça impossibilitada de sair do lugar. Tratava-se da rainha.

– Espera, você não pode-

– Oh, não? Pelo jeito você não prestou muita atenção nas aulas – sorriu, pondo-a para fora do tabuleiro. Engoli em seco, já cogitando ter esquecido de alguma regra importante, mas na minha cabeça, não daria para fazer isso em nenhuma hipótese – Vou te mostrar de uma forma mais fácil de entender. Lembra do roque?

– Sim, eu uso o rei e a torre, meio que intercalando os dois.

– Isso. Mas e se eu te disser que é possível fazer o mesmo roque, mas entre os reis?

– Entre... os reis... sério mesmo?!

– Uhum, retire a sua rainha do tabuleiro – assim o fiz – Eu vou posicionar o meu rei no centro e você faz o mesmo.

– E agora? – perguntei inocentemente, não percebendo o que Shadow estava querendo me transmitir ao criar de repente aquela jogada inexistente no original.

– Agora efetuamos o roque – ele encostou a cruz que fica na base do seu rei com a do meu, simulando um selar.

Então entendi do que se tratava e um rubor formou-se em meu rosto. Ele sorriu da minha expressão, abaixei o olhar, encolhendo-me na cadeira, fui persuadido mas fiquei feliz, até o momento de trazer para a realidade.

– Eu queria que fosse fácil como em um jogo. Por que a vida real precisa ser tão difícil? – seus dedos acariciaram minha mão, segurando-a em seguida.

– Sei bem como se sente e infelizmente não posso realizar todos seus sonhos, por mais loucos que eles possam parecer – ri:

– Você acha louco se nos casássemos? – Shadow enfim mudou a feição, adoravelmente, segurando mais forte minha mão:

– Não, eu acho que seria maravilhoso – minhas pálpebras pesaram, cocei os olhos que filtravam lágrimas de contentamento repentino.

– D-droga, Shadow – funguei – Por que eu tinha que nascer aqui? Só queria... ser livre p-para fazer o que quiser, ser feliz.

– Shh... – ele pôs-se de pé e abraçou-me – Ninguém consegue ser livre de verdade, algo que aprendi nesses tantos anos é que isso não passa de ilusão. Temos poder para escrever uma história de vida, mas nunca exatamente como imaginamos. As imperfeições não deixarão de existir porque desejamos que desapareçam – seus polegares acariciaram abaixo de meus olhos – Mas eu estou aqui para você, não estou? Independente do que os outros decidirem o que deve acontecer na sua vida, isso não mudará. Vou continuar aqui.

– Shadow...

– Hum? – levantei e aferrei-me a ele:

– Obrigado por me aceitar, me ouvir, me entender... por tudo, por existir e não julgar minhas ações.

– Pode desabafar tudo comigo, afinal, sou mais que seu protetor ou amigo. Cuidar de você deixou de se tratar de apenas uma obrigação há muito tempo.

Horas de prosa e jogatinas se passaram. Lancelot confessara-me coisas que jamais haveria de ter notado. No início ele pensava em como me faria seguir uma linha tênue de obrigações básicas, pois meus pais haviam passado-lhe uma visão destorcida de que eu era manipulador. Estavam convencidos de que criando uma grande problemática, conseguiriam me "consertar". Mas o aprecio que ele desenvolveu acabou mudando tudo e inclusive, me mudando, porém de forma ainda bastante indesejada por eles.

– Seus pais já não tem muita confiança em mim, desde o início deixaram explícito – explicava Shadow – E isso faz eu temer o futuro, de como podemos lidar com toda essa situação.

– Quando você diz situação...

– Eu me refiro à nossa relação, mas não apenas isso, seu não tão distante matrimônio, todas as coisas ilegais e escondidas que realizamos, até envolvemos outro príncipe.

Recordei de Knuckles, Rouge, o bar, o assédio, as compras, as festas, as discussões. Estava tudo ainda muito nítido, a reputação por um fio. Muitas pessoas sabem que estivemos por lá e poderiam muito bem espalhar o que viram, mas creio que pelo respeito com para mim não o fazem.

Nosso reinado é bem visto e amado, como uma família feliz e próspera em formação. Mas ao estar inserido nela, essa mesma família parece vestir uma capa contra imperfeições e faz questão de usar ela sempre que precisa apresentar-se ao povo.

– O que podemos fazer para mudar tudo isso?

– Acredito que modificar um sistema implementado há tantos ciclos não seja efetivo por agora.

– Então...

– Me desculpe, Sonic. Mas na posição que nos encontramos agora, o único que nos resta é aceitar ou aguardar alguma oportunidade rara de sugestão.

Estava prestes a contestar, quando ouvimos a porta da biblioteca ranger brevemente. Ela geralmente faria esse som se alguém estivesse saindo dela. Fomos rapidamente checar, mas não havia ninguém em volta, então constatamos se tratar apenas do vento.

– Vou seguir seu conselho – falei após refletir, pois acreditava que não havia ninguém melhor que Shadow para saber o que seria melhor para mim.

– Não se preocupe, vamos enfrentar os problemas que vierem.

– Juntos – ele assentiu. Sorri e segurei sua mão.

 Sorri e segurei sua mão

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