Memórias de 2010, 15 anos.
Quando temos 5 anos de idade nós fazemos promessas. Ficamos esperançosos que aquilo dure para sempre, mas na grande maioria das vezes você apenas cresce e já nem se lembra mais o propósito daquilo. Tudo muda rápido demais, tão rápido que algumas mudanças são imperceptíveis e outras te chocam até você cair na real de que elas realmente aconteceram.
Eu precisava colocar tudo que eu estava sentindo pra fora. Assim que amanheceu fui até a casa de Rafa decidida a colocar o pingo nos "i"s daquela situação.
Eu novamente estava naquele quarto. Skates quebrados no canto junto com as bolas de vôlei que Rafa acumulou ao longo dos anos no time do colégio, paredes brancas encardidas de quem não se importava em como aquele ambiente estava, já que ela só o usava para dormir ou quando estava mal humorada com a vida. Tinha bagunça por todo lado, roupa suja e embalagens de comida, era um completo caos.
Eu sentia agonia e me controlava para não encher o saco dela para que arrumasse aquilo. Fora isso, parecia tudo igual. Tinha a mesma janela que tinha vista para o meu quarto.
Lembro de quando eu e rafa nos conhecemos, de como era empolgante tentar nos comunicar pelas janelas dos nossos quartos depois da hora de dormir fazendo o mínimo barulho possível. Era por elas que eu conversava com Rafa todas as vezes que ela esteve de castigo – inúmeras, só para constar - e foi por ela que eu vi passar diante dos meus olhos o sofrimento de ver minha amiga tão perto e ao mesmo tempo tão longe quando não nos falamos.
Lembro também da última vez que estive nesse quarto. Fazia meses.
— Por favor, Margot. Eu só preciso que você diga a minha mãe que vou dormir hoje na sua casa. —Disse Rafa quase sussurrando. — Só isso!
—Eu não sei...
—Não sabe o que? Caramba, Margot. Confie em mim!
— Eu não sei se isso é certo, Rafa. E se alguma coisa acontecer? E se me pegarem mentindo?
—Relaxe! Eu volto bem cedinho.—Suspirei e cruzei os braços. O que eu podia fazer? Aquilo tinha se tornado frequente. Dei de ombros e ela se deu por vencida. — Sabia que você ia entender.
Rafa sorriu de orelha a orelha e me deu um beijo estalado na bochecha. Saiu vasculhando o guarda-roupa empolgada em busca de um dos seus vestidos decotados para ir à festa que teria na casa de um dos seus novos amiguinhos problemáticos.
Ela realmente cumpriu aquele plano arquitetado e foi àquela festa. Na manhã seguinte eu consegui vê-la da janela do meu quarto entrando na sua de casa de fininho ainda com a roupa de festa e os saltos nas mãos, um tempo depois de seus pais já terem saído para seus respectivos trabalhos. Cidinha a pegou no flagra, mas eu não sabia que tipo de coisa ela fazia para calar a boca da moça, que só falou meia dúzia de reclamações, balançou a cabeça e saiu de perto dela irritada.
Eu não sabia direito o que fazer, nem por onde começar. É realmente desesperador quando nós percebemos que alguém que amamos está mudando a um ponto que não reconhecemos mais. Aquilo acontecia de uma forma angustiantemente lenta com Rafa à anos e eu me sentia completamente impotente.
Me sentia dividida entre contar toda a verdade e proteger ela dela mesma, ou ficar na minha e não trair a confiança dela. A primeira opção é a correta, isso é óbvio, mas não é assim tão fácil escolher. Eu precisava com certa urgência conversar sobre isso com Enzo, ele sempre sabia lidar mais que eu com essas coisas, eu geralmente levava para o lado sentimental e estragava tudo.
O que Rafa tinha feito com Enzo não tinha perdão. Não tinha desculpas. Por isso eu estava depois de meses plantada na frente do quarto dela disposta a ter uma conversa definitiva com ela.
— Margot eu só quero que você me entenda...
— Bom dia, Rafa. — Cortei logo qualquer tentativa dela de se justificar antes de ouvir o que eu tinha para dizer.
Rafa se calou e sentou na sua cama. Ela ainda estava com a fantasia e maquiagem do dia anterior.
— Se quiser sentar, fique à vontade. — Depois de um silêncio constrangedor ela abriu a boca —Como está Enzo? Ele melhorou?
— Ele já recebeu alta do hospital meia hora atrás.
— Nossa, que alívio.
Ignorei completamente o comentário dela e continuei em pé encarando-a.
— O que vai ser da gente agora, Rafa? Você acha que amanhã ou depois eu vou esquecer do que você fez?
— Para Margot. Você está me colocando como a pior pessoa do mundo! Eu não tive culpa que ele comeu os brigadeiros, eu só...
— Nós éramos amigas. — Interrompi o que ela tinha a dizer, nada justificava — Eu lembro do dia que você mudou para essa casa. Eu lembro do dia que conversamos pela primeira vez. Eu lembro... de como nós duas éramos inseparáveis e agora? Olha só você! Você é uma estranha pra mim.
— Ainda somos amigas...
— NÃO SOMOS! — Senti minha garganta fechando. Meus olhos estavam ardendo e a qualquer momento eu iria desabar, mas ela precisava ouvir tudo que eu tinha para dizer. — Você não tem sido minha amiga há muito tempo, Rafa. Desde antes de Vanessa. Desde antes do seu namoro. O que você quer de mim, afinal? Uma pessoa que te dê cobertura pros seus pais quando você faz merda? Ultimamente só para isso que eu tenho servido. Você mente para mim, você me coloca em enrascada e... você ainda diz se importar em como eu estou, como eu me sinto.
— Isso é coisa que Diana fica colocando na sua cabeça?
— Não envolva Diana. Cedo ou tarde eu iria perceber tudo isso. Eu vim aqui pra dizer que se você está com o mínimo de arrependimento, menor que seja, saia dessa Rafa.
— Mas eu não estou envolvida com nada!
Ela até pode saber mentir. Mas ela não pode esquecer que crescemos juntas. Toda vez que ela mente ela desvia o olhar para a esquerda e para baixo em seguida. Exatamente da forma como ela tinha acabado de fazer.
Respirei fundo e troquei o peso de uma perna para a outra. Ela permanecia imóvel.
— Eu sei de tudo Rafa. Não adianta esconder. Sei do envolvimento desse povo que você anda com drogas e sei que você está metida até o pescoço com isso. Você pode ficar tranquila que não vai ser eu a te dedurar. Você só está se afundando. Sabe, o que aconteceu com Enzo no fundo foi bom. Eu finalmente acordei e vi quem é você de verdade. Se fosse eu no lugar dele você teria feito o mesmo comigo.
Ela balbuciou algumas palavras, mas eu não fiquei tempo suficiente na casa dela para ouvir. Tudo que saía da boca dela ultimamente me enojava.
O que eu tinha certeza é que tudo daquele momento em diante seria diferente.
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Minha coleção de biscoitos
General FictionMargot é especialista em colecionar eventos não agradáveis. Dividir a casa com uma família problemática, ter amigos impulsivos e ser altamente excluída... parece bastante, mas é só uma amostra grátis. Apesar das adversidades, ela anseia encontrar se...