6 - Dia dos pais

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Memórias de 2007, 12 anos.


Rafa sempre pareceu ter o dom de fazer perguntas inconvenientes na hora mais errada possível.

Tínhamos uns 6 anos quando ela conheceu a mãe de Enzo e ficou de boca aberta por não ser o que esperava "Eu pensei que você era branca, mas você é negra!" Ela não falou por maldade ou racismo, era só uma menina que falava antes de pensar. Tia Verônica só riu com a descoberta da menina. Certa vez estávamos brincando na casa de Enzo, e Rafa tinha a mania de ficar reparando tudo na casa dos outros. Focou seus olhinhos nos porta-retratos da sala. Soltou do nada a seguinte pergunta que mais parecia bomba relógio:

— Enzo, cadê seu pai? — ela tinha só 7 aninhos e aquela pergunta foi sem dúvida isenta de maldade. Ela só estava curiosa, era a primeira vez que ela ia na casa dele.

— Eu não sei. — falava meio cabisbaixo.

— Ele foi morar em outra casa que nem o meu? — os pais dela tinham se separado e ela ainda não entendia e nem aceitava que o seu papai não morava mais na mesma casa que ela, a mãe e o irmão.

Enzo não respondeu aquela pergunta.

— Deus levou ele pro céu? — perguntou dessa vez sussurrando.

Vó Ana que consertava meu penteado bagunçado apenas observava a cena inquieta. Tratou de cortar aquele assunto tenso com um delicioso bolo de chocolate.

Outra vez tia Verônica levou eu e Enzo para o parquinho em uma das raras folgas dela e pareceu muito chateada quando uma mulher loira fez uma confusão achando que ela era nossa babá, não a mãe do Enzo. Naquela época eu nem sequer estranhava o fato de que Tia Verônica e vó Ana eram negras e o garoto era tão branco quanto papel. Para mim era algo muito normal, convivi com eles desde que nasci. Quando eu fiquei mais velha continuei sem ligar para aquele fato.


***


— O pai de Enzo deve ser branco — cochichava Rafa no meu ouvido enquanto a gente estava em um dia no recreio, já no oitavo ano — A mãe dele é muito bonita, mas ele não puxou muito dela.

De fato, eles eram pouco parecidos. Eu percebia a semelhança na boca, no formato do rosto — era idêntico — no jeito de ser, mas parava por aí. Sempre que a mãe dele marcava presença no colégio era muito cochicho de todos os lados. Por causa do pai de Enzo nunca ter dado às caras, a falação era espalhada. As pessoas não tinham o que fazer e inventavam teorias. Desde mais realistas como ela criando-o sozinha, até que a Tia Verônica tinha roubado ele na maternidade do hospital que ela trabalhava. Seres humanos as vezes são ridículos.

Até o oitavo ano eu sabia o básico: Tia verônica era mãe solteira. Tinha que trabalhar duro para sustentar uma casa e o filho sozinha.

Era uma sexta feira chuvosa quando o gatilho da curiosidade pelo assunto foi puxado. Eu estava na casa de Enzo fazendo trabalho de geografia e Vó Ana estava ocupada trabalhando nas suas encomendas. A gente precisava de cola para colocar as imagens no cartaz, mas a nossa havia acabado. Enzo então lembrou que na gaveta de remédios da sua mãe tinha fita. Era fita de curativo, mas pelo menos colava. Fiquei esperando-o voltar fazendo o título do cartaz e devorando o bolo delicioso de cenoura feito por vó Ana. Enzo voltou meio pálido com a fita na mão, mas também com uma fotografia. Na foto tinha a mãe dele bem mais nova, abraçada carinhosamente à um rapaz. Demorei um pouco para me tocar que aquele homem parecia muito com Enzo. Extremamente parecido.

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