2 - A menina planejada

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Memórias de 2001, 6 anos.


Raquel foi a única criança de fato planejada naquela casa. Mamãe engravidou de Susana quando ela e o meu pai ainda namoravam. Como nossa família sempre foi muito religiosa e tradicional, eles se casaram mesmo antes de a menina nascer. A cidadezinha onde eles moravam não tinha muitas oportunidades, então eles decidiram se mudar para uma cidade mais próxima da capital, na região metropolitana, onde os custos de vida não eram tão altos comparados a capital.

Susana nasceu, e depois de passar muitos perrengues, meu pai conseguiu um emprego bom no banco graças à sua graduação em administração. Minha mãe, que antes era acostumada a trabalhar em uma loja como vendedora, percebeu que não conseguiria nada naquela cidade se não estudasse algo ou tivesse alguma coisa para "esquentar" seu currículo. Então revezava entre cuidar da filha e fazer curso de farmácia, que na época ela conseguia pagar vendendo docinhos escondido na faculdade e recebendo pedidos de encomendas da padaria e de eventos.

Eles juntaram dinheiro, construíram uma casa legal num bairro seguro e viviam tranquilamente com Susana. A criança não dava trabalho, ficava na escolinha no período que nossa mãe estudava e quando estava em casa apenas dormia de tão cansada das atividades do dia inteiro.

Minha mãe se formou com Raquel na barriga dela. Eles a planejaram, achavam que ter outra filha com apenas 3 anos de diferença seria bom. Susana com seus 3 aninhos também era bastante solitária, meus pais não queriam isso.

Mas para eles parariam por aí. Eles sabiam que a sociedade tinha mudado, e agora quanto menos filhos, melhor, pois poderiam dar uma vida boa para as duas meninas tranquilamente. Mamãe trabalhava, Susana e Raquel — agora com respectivamente 5 e 2 anos — ficavam bem na creche de tempo integral.

Foi aí que o anticoncepcional falhou e permitiu a minha existência nesse mundo. Sim, eu vim ao mundo por acaso. Meus pais não pensavam em ter outro filho e tampouco queriam ter. Muita responsabilidade estava em jogo, mas eles não tinham mais o que fazer; Eu já estava instalada no útero da minha mãe.

Eles pensavam que vinha um menino, por isso não tinham pensado em nenhum nome de menina quando eu nasci. A própria médica se enganou com a ultrassonografia e somente nas últimas semanas de gestação minha mãe soube que vinha mais uma menina pro time. Eles contam que Susana quase chorou de emoção, ela queria uma irmã e não um irmão. Eles deixaram Susana folhear um dicionário de nomes e de olhos fechados apontasse para um. Se fosse de menina seria o meu. Primeiro foi Davi, depois Afonso e até que chegou um de menina: Margot.

— Ei, não precisa chorar. Seu nome é lindo! — dizia Susana tentando em vão me consolar.

— Mas eles me chamam de "Margot, cara de cocô!"

No auge dos meus 5 anos aquilo me fazia chorar copiosamente, muito mesmo. Culpava Susana de ter escolhido um nome estranho pra mim. Somente no ensino médio eu fui de fato gostar do meu nome. Era um nome gringo, diferente e muitas artistas bonitas tinham esse nome.

Quando eu tinha 6 aninhos, uma garota foi morar lá em casa com a gente. Era Marta, uma menina de 16 anos, prima de segundo grau do meu pai. Tia Lucinda — mãe da menina — achava a filha inteligente demais para aquele "fim de mundo", como ela chamava o interior que meus pais moravam antes de se mudarem para mais perto da capital. Então Marta moraria com a gente para estudar em escolas melhores e de quebra iria ajudar minha mãe a tomar conta da gente, como nossa babá nas horas vagas. Parecia uma boa ideia, e não seria tão ruim se não fosse pela Raquel: minha irmã que começávamos a perceber que era perversa além do normal para uma criança.

Marta não era uma menina ruim, muito pelo contrário: era legal com a gente. Por ser nossa parente e ter traços meus e das minhas irmãs, passava facilmente despercebida como uma de nós. Contava histórias, brincava com a gente mesmo já sendo mais velha e fazia docinhos escondido dos nossos pais. Até Enzo gostava dela. O "trabalho" dela em tomar conta da gente era bem levinho e apesar do bullying que ela estava sofrendo na escola por ser do interior e por ter um rosto cheio de espinhas, ela estava se acostumando rápido a nossa rotina.

Mas Raquel gostava de caçoar dela e aos poucos a antipatia injustificada da minha irmã por nossa prima ia aumentando. "Você fala igual caipira", "você veio para ser nossa empregada, não pra usar nossas coisas". "Mamãe deixa o dinheiro guardado num cofre, me disse que tem medo de que você possa roubar a gente". O que claro, era mentira. Minha mãe adorava Marta e dizia nada daquilo.

Marta chorava escondido vez ou outra, mas deixava parecer que estava tudo bem. Um dia ela comprou brigadeiros para gente, na hora Raquel comeu e disse que estava bom. Mais tarde fez escândalo dizendo que a barriga doía — o que não era verdade— E que Marta tinha dado brigadeiro estragado para gente. Meus pais chamaram a atenção da pobre Marta, que só assentiu chorosa e voltou a fazer lição de casa.

Os meses iam passando e a situação piorava entre Marta e Raquel. Ela não deixava a garota pentear seus cabelos, dizendo que ela puxava tanto que dava dor de cabeça. Mais uma mentira, os cabelos de Raquel eram tão lisos e macios que nenhum prendedor de cabelo ficava, inclusive nem embaraçava. Entregou por pura maldade a carta que um garoto do colégio de Marta fizera para ela e mentiu dizendo que tinha visto eles dois se beijando na varanda da nossa casa.

Marta salvava eu e Susana dos acessos de fúria de Raquel, que aconteciam geralmente quando não dávamos a ela o que ela queria ou quando discordávamos de algo que ela dizia.

— Eu sei que você dorme com o quarto destrancado. Sei onde mamãe guarda as facas. Eu vou matar você. — uma noite Raquel disse para Marta com toda a convicção. Marta ficou sem reação, era uma garotinha que queria pegar uma faca para matar ela.

Certa vez Raquel apareceu com vários hematomas no rosto e corpo — que ela mesmo tinha provocado ao cair do balanço no parquinho — e chorou fazendo uma cena dizendo que Marta batia nela. A pobre Marta negou tudo chocada com a maldade que Raquel, uma menininha de 8 anos, podia ter.

As marcas apareciam cada vez mais, então meus pais decidiram colocar câmeras na casa. Acusar Marta era muito grave, ela era da família e geraria problemas com tia Lucinda; mas eles estavam horrorizados acreditando nas palavras de Raquel, que na frente deles era angelical. Na época eu não sabia, mas Susana me contou anos depois que eles gastaram uma grana preta colocando essas câmeras escondidas na casa e tentaram manter isso em segredo para a gente não desconfiar do que estava acontecendo. Marta também aparecia vez ou outra com um arranhão, hematoma ou mordida.

O que eles viram nas gravações deixaram eles chocados e perplexos: Não era Marta que batia, mas sim estava apanhando de Raquel, uma garotinha de 8 anos que atacava ela com agressividade além do normal. Dava socos e chutes, esperneava e gritava. Ela tentava se defender, tentava parar a menina, mas era mordida e cada vez mais agredida. Eu e Susana escutávamos escondidas as discussões em voz baixa que eles tinham sobre nossa irmã.

Meus pais chamaram Marta para conversar, tentar dar apoio para o que estava acontecendo, mas a menina não queria continuar ali nem mais um dia. Pegou as poucas coisas que tinha e implorou para voltar para casa. Desde então, nem férias ela queria passar com a gente.

Com o tempo minha mãe precisou largar o emprego para controlar a situação lá em casa. Ela nunca admitiu que o motivo era medo da agressividade de Raquel, dizia que preferia ficar em casa do que trabalhar; o que era mentira, ela gostava de ser independente. Mamãe cada vez mais foi ficando frustrada em ter que cuidar das brigas em casa e parecia sempre estar estressada, ao contrário da mulher gentil e boazinha de quando eu era menor. 

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