Capítulo Trinta

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Posso sentir uma movimentação descendo pelo meu queixo e depois subir de volta para o maxilar. É suave, mas firme na medida certa. Se não fosse loucura, poderia facilmente dizer que estava amando ser acariciado enquanto dormia. E apenas pensar nisso me faz despertar. Minhas pálpebras se movem. Abro meus olhos com calma e ainda posso ver as copas das árvores, mas demora até minha visão estabilizar todas aquelas cores e claridade. Tenho a sensação de que meu pescoço está deitado sobre algo macio, por um momento, não parece mais o solo duro. Ergo meu corpo e estico os meus braços, relaxando as costas.

— Mark, eu realmente dormi — Esfrego os olhos. — Quanto tempo se passou?

— Quase uma hora.

— Tudo isso?! — Olho para ele.

— Não era para menos, você se remexeu a noite toda.

— Você percebeu?

Mark fecha o livro, mantendo seus dedos entre as páginas e meu olhar cai para suas mãos, podendo ver que ele tinha lido uma boa parte durante meu longo cochilo. Abro um sorriso, comentando:

— Para um nerd que ama livros científicos, você está bem rápido.

Ele alisa a capa.

— A leitura é agradável realmente.

— Vamos indo? Aí você pode me contar o que está achando no caminho...

Ficar parados ali durante todo esse tempo enrijeceu boa parte dos nossos músculos e com isso tivemos que caminhar carregando nossas bicicletas. A tarde estava chegando ao seu final, mas isso fazia do calor mais agradável. Mark me explicava a sua visão do livro até aqui, me fazendo ver pontos interessantes que haviam passados despercebidos por mim. Presos numa discussão, só paramos de falar disso quando chegamos ao topo da ladeira a qual teríamos que descer. Essa era a minha parte favorita de voltar por esse caminho. Precisei montar na bicicleta e sair na frente de Mark, o fazendo comer poeira. A inclinação era segura e tranquila, o vento batendo contra o rosto não tinha comparação a qualquer outra sensação tão gostosa. Quando a rua estava tomando uma forma plana sobre minhas rodas, me deixei olhar para trás, podendo ver que Mark ainda estava a algumas pedaladas de mim. Sorrio pelo momento.

Mas tudo muda em um segundo.

Não sei se o cochilo me fez mais desnorteado ou se a descida era assim tão extasiante a ponto de me perder, mas por um instante, fico desorientado e esqueço que ainda estou pedalando. No cruzamento entre quatro ruas, não vi o sinal vermelho e não apertei o freio para parar a bicicleta antes da via principal.

Escuto Mark gritando o meu nome, não para me pedir que esperasse por ele, mas um grito alarmado, como se houvesse algo errado. Viro a cabeça para trás e levo o maior susto da vida quando a buzina de um ônibus escolar quase explode os meus tímpanos. Sem tempo de pensar, tiro as mãos do guidão e me jogo para o lado oposto. Sou arremessado no asfalto enquanto o motorista entrega tudo de si para conseguir pisar no freio, o som do pneu canta ao arrastar no solo. Não vejo mais nada, sei que tudo está perdido quando fecho os olhos e espero pelo pior.

Sinto uma ventania abrupta passar por mim e ainda com os olhos bem apertados, ouço a porta de um veículo bater. Posso ouvir os xingamentos mais baixos do mundo e por um segundo percebo que estou consciente. Tenho coragem de abrir meus olhos, mas faço devagar. O ônibus estacionou a alguns metros de mim, como pôde.

Nada aconteceu. Nesse momento, pareço estar em qualquer lugar, exceto ali. Não me sinto vivo, estou fora de mim, fora do meu choque, assistindo meu corpo jogado no meio da rua. Não consigo imaginar mais nada a não ser que por um triz, eu poderia estar debaixo daquelas grandes rodas.

Pelo Olhar Dele - MarkhyuckOnde histórias criam vida. Descubra agora