Epilogo

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Jeny mancou até a mesa da sorveteria, a muleta ainda era uma necessidade. Estava vestida de forma simples, com uma saia rodada azul céu e uma blusa branca leve. O sol aquecia a todos naquela tarde, e todos consistia em Jeny, Cortez e Filipo. Os dois estavam sentados, sorvetes ainda sendo consumidos, o de Jeny particularmente intocado, derretido aos lados.

- Rapazes, desculpem... – Sentou e Filipo a ajudou. – Precisava atender esse telefonema.

- Ainda atrás dele?

- Sim. Não me conformo.

- Eu entendo. – Filipo enfiou a colher uma, duas vezes e encarou Jeny com os olhos verdes, brilhantes e carinhosos. – Eu também não me conformo, as vezes sim, as vezes não, mas na maioria das vezes apenas tento me pôr no lugar dele, tentar entender o que ele está aprontando.

- Ele está fazendo o que acha certo.

- O que acha certo? – Indagou Jeny. – E você acha isso certo?

Cortez deu de ombros e voltou a tarefa de terminar seu sorvete. Jeny mordeu o lábio, encarando o mundo através das lentes escurecidas de seu óculos. Não está certo, poderia estar certo? Não, acreditava que não.

- E porque você está tão preocupada? – Cortez disse após terminar o sorvete. – Você é a Bispo da Rainha.

- Mas Kurt... – Sua voz saiu alta, quase um grito. – Mas o nosso Rei está desaparecido a tanto tempo. Isso não o preocupa?

- Ainda não – completou Cortez. – Mesmo sendo seu Bispo, acredito que ele esteja atrás de algo que apenas ele é capaz de encontrar. Enquanto isso, Megami está dando as cartas, como sempre.

- Mas...

- Chega de mas. – Disse Filipo.

- Não, deixe a garota questionar. É isso que Bispos fazem.

E a conversa ficou por aquilo, os sorvetes acabaram. Cortez e Filipo se despediram de Jeny, caminhando até um Dodge Challenger preto. Jeny ficou sozinha ali por um tempo, tomando uma garrafa de agua, imaginando onde Kurt poderia estar. Levantou e pagou a conta, foi até seu BMW e entrou, jogando a muleta no banco do passageiro. Ainda tinha o cheiro de Kurt aquele carro.

...

O hospital cheirava a limpeza, claro. Mas o delicioso cheiro de rosas e tulipas do buque que Jeny carregava alegrava o ambiente estéril, trazia toda uma gama de cores e alegria a um cenário branco e azul pálido. Bateu na porta antes de entrar e viu a garota que veio visitar rindo divertida de um desenho do Pica-Pau.

E lá vamos nós! Dizia bruxa ao testar uma vassoura, indignada, jogou a vassoura longe e pegou outra de uma pilha de dezenas dela. E lá vamos nós! Repetia e repetia, e a cada vez, a garota dava mais uma risada.

- Bom dia Acqua. – Disse Jeny, lhe entregando as flores.

Acqua abraçou o buque e respirou bem fundo, cheirando-as. Um sorriso ainda maior foi de um lado a outro do rosto, o que era um excelente sinal, dada a melhora no movimento de seu rosto. A placa foi substituída por uma prótese sintética, o couro cabeludo recuperado com enxerto, mas o cabelo ainda estava falho naquela área, e provavelmente ficaria assim para o resto da vida. Os cabelos roxos estavam penteados para o lado, cobrindo a área onde havia a falha, sua raiz ruiva agora saltava claramente aos olhos com quase dez centímetros. A cada corte, o roxo sumia e o vermelho tomava conta.

- Como está hoje?

- Ótema! – Ela tocou a própria bochecha. – Consigo sorrir com os dois lados, olha! – E sorriu. – Olha! Olha!

- Estou vendo. – Jeny sorriu, complacente.

Pegou a prancheta com os laudos da paciente e passou os olhos sobre ele. Dizia ali, em letras miúdas, "melhora da coordenação motora". Isso é ótemo, pensou, mas ainda havia ali algo que realmente a entristecia, a esperança dizia para não se preocupar, ela iria melhorar, mas a dura realidade dizia o contrário.

- O que está assistindo?

- Pica-pau.

- Você sabe quem desenhou o pica-pau?

- Nem sei. – Disse torcendo o lábio, os olhos na tela. – Mas seja lá quem for, ele era muito engraçado! Deveria ser uma pessoa muito divertida.

- E sabe quem desenhou aquele outro que você gosta, o Zé Colmeia?

- Deve ter sido o mesmo. – Respondeu sem dar muita bola para o que Jeny perguntava.

Ali na prancheta dizia, amnésia, ao lado, a data do acidente. Jeny teve de se apresentar a Acqua a primeira vez que a viu, mas assim também o fez Yigal, Filipo, Cortez e Megami. Na época em que Acqua saiu do coma, Kurt já havia desaparecido. Não deixou bilhete, não avisou ninguém. Na noite anterior ao seu desaparecimento, havia dado uma ordem a todos eles para que não citasse ele ou o Reino para Acqua. E então simplesmente sumiu, como um Rei que abandona um Reinado. Cortez nega o fato, diz que ele teve motivos para sumir, disse que ele tem que ter um motivo. Filipo fica ao seu lado, apoia a opinião de Cortez. Megami cuspiu fogo nos primeiros dias e mandou dezenas de equipes de busca em todo o país e algumas até mesmo no exterior, mas sem sucesso. Não conseguia lidar com a ideia de que com todo aquele recurso ainda não conseguia achar um Buick 1970!

Acqua não se lembrava de Kurt, e Jeny queria encontra-lo mais uma vez.

Queria entender uma coisa.

Queria saber como ele se sente.



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