Súdito

Cap. 15 - O Rei Preto -

- Voxe teim us olhux du xeu vô. - Passou as costas da mão esquelética na boca, em uma tentativa vã de limpar o filete de baba. - Vamos ter qui cunfabular bem rápido. Cunhexo xua Rainha, a xaponexa, vai vir aqui cum armas em xamas, i até vai xer difícil xairmos cum vida daqui max... - Ele tocou na mão de Tod que segurava a cadeira, enchendo os olhos d'agua do jovem ruivo. - Max valeu a pena Tôdi, obrigado pelo presente...

As palavras saiam com dificuldade e com mais dificuldade ainda eram compreendidas. Salvatore tentava falar, mas a cada frase, havia uma longa respiração, uma pausa que cansava qualquer ouvinte. Além do mais, olhar aquela boca movendo para cima e para baixo, o filete de baba brilhando com a luz amarelada e aquele calor... Tudo aquilo trazia repulsa a Kurt que, segurando a pequena janta de salame e palmito, manteve-se firme para ouvir o que aquele ancião tinha para falar.

Mas foi um alivio quando Tod tomou a dianteira e contou a historia que ele tentava ruminar.

...

Palermo, Itália, 1971.

Sacrlet segurava sua filha,  Dafne, uma pequena criança recém nascida, pequenos olhos verdes e brilhantes a encaravam na penumbra do quarto, sorria para sua mãe, que a encarava com lágrimas no olhar. Sabia que a pequena Dafne nunca conheceria seu pai que, no mesmo momento, em Giarre, interior da Sicília, sorria com o pequeno Thomas nos braços, sua esposa Roseta carregava uma expressão leve e satisfeita, orgulhosa pelo pequeno varão que Giuseppe, agora Gasparetto, balança com zelo e carinho nos braços.

Salvatore abriu a porta do quarto, uma luz amarela invadiu a penumbra do quarto e desviou o olhar da mais nova mãe. O homem usava um chapéu que escondia os olhos e uma mascara de couro onde aquela mesma mulher tinha lhe rasgado a face. A mascara era grossa e dura, mas acompanhava o movimento do maxilar, era difícil compreender o que ele falava, mas Scarlett já havia se acostumado e aprendido a entender as palavras difíceis. Marcas e cicatrizes inchadas de queimadura lhe subiam do peito até o pescoço.

Segurou a porta do quarto de luxo, iluminado apenas por um abajur florido, o que trazia uma sensação e um clima confortável para aquele lugar climatizado, contudo, também trazia uma sensação de abandono, de solidão e de cansaço. O quarto todo cheirava a rosas, o doce aroma inundou as narinas de Salvatore que, com uma ideia em mente, a torceu e repudiou ao ver aquela mulher naquele estado. Não estava certo, de forma alguma. Scarlet não merecia isso.

- Isso não é justo, e você sabe disso. - Salvatore rosnou e continuou, a mão ainda na maçaneta da porta. - Essa garotinha é a filha legítima de Guissepe. Roseta não tem nenhum brilho nos olhos, ele está querendo fugir do que realmente é. Dafne sim, é quem deveria ser paparicada pelo seu pai.

- Salvatore, não temos mais o que fazer. O Reino já está em...

- O Reino perciste! Eu sou o Rei Preto! Dafne deveria carregar o sangue nobre que está em suas veias, não o filho de Roseta! O filho de Roseta não tem o necessário, não tem nenhum brilho e eu sei disso! Ele não tem coração!

As lágrimas finalmente rolaram pelo rosto de Scarlet. Todo o glamour e toda as aventuras sexuais que tiveram resultaram em uma criança linda, mas abandonada pelo pai que fugiu para o interior da Sicília com sua esposa Roseta e seu filho Thomas. Agora estava em um quarto de uma mansão, deitada em uma cama king size, o corpo cansado e ainda em recuperação do recente trabalho de parto. Um delicioso cheiro de rosas perfumavam o local e relaxa o corpo daquela mulher, mas ainda que ela tentasse se enganar, sabia que Salvatore tinha razão até certo ponto.

- Eu entendo Giuseppe... Ou melhor, Gasparetto. - Na penumbra, Scarlett sorriu. - Confesso que eu mesma gostaria, agora eu gostaria, de uma vida calma, longe de toda essa busca.