Cap. 8 - O Reino -

146 11 3
  • Dedicado a Arivan Miculis Reigota
                                    

- Malkuth.

- Esse é o nome do reino?

- Sim... e não. – Yigal sentou do lado de fora da casa de madeira, ainda com o avental ensanguentado. A cerveja já havia acabado e ele reabasteceu pegando um engradado inteiro e levando para fora. – Veja, Malkuth não é o nome do reino porque ele é o reino em si, e se estamos em um reino, nada melhor do que sermos reis, não é verdade? Afinal, um reino precisa de reis, sim senhor.

Kurt abriu a lata sem muita vontade. Yigal cheirava a sangue e perfume masculino, forte e áspero, o orvalho que caia no amanhecer deixava todo o local com um cheiro característico de mato seco, mas ainda assim, de alguma forma absurda, tinha certeza que podia sentir o cheiro do cabelo de Acqua ali fora, o cheiro de ameixa.

- Sendo um reino, aqueles que o reinam tiram o maior proveito da experiência. – Abriu a lata e tomou um gole pequeno. – Aquele que reina pode dar a seus súditos uma experiência melhor também. É tudo uma questão de lógica Kurt. Enquanto rei, você reina, enquanto súdito, você serve.

- E se não houver reis? – Perguntou, lembrando das palavras de Acqua.

- A anarquia se instaura.

- Entendo. Não havendo reis ou sacerdotes, o mundo finalmente poderá ser livre.

- É uma falsa liberdade. – Resmungou.

- Porque diz isso?

- Estamos em um reino Kurt, estamos em Malkuth, sem um único rei para nos guiar, teríamos vários pequenos reis, em sua maioria tiranos, reinando sobre os mais fracos. Nós precisamos de reis. – Fez uma pausa pensativo, depois em um sorriso que parecia desafiador, continuou. – Na verdade Kurt, sem reis haverá deuses. Mas sabe, sabe assim de verdade? Deus só existe um, sim senhor, um só. E seu nome é tão poderoso que é impronunciável, entenda, ou melhor, esqueça deus por um momento, ou o que você sabe dele.  – Balançou as mãos como se apagasse um quadro negro e voltasse a escrever. – Agora imagine duas pessoas, invente nomes para elas, - Kurt começou a imaginar, um homem e uma mulher, Roberto e Sara – invente uma profissão, essas duas pessoas se conhecem agora. – Olá, sou Roberto, e eu sou Sara. – Então Kurt, imagine que elas simplesmente se casam, tem filhos e morrem de velhice.

- Seu ponto é? – Disse um tanto incomodo ao imaginar os dois velhos morrendo em uma cama de hospital.

Yigal deu um sorriso vitorioso em meio a barba branca e rala. Tomou um longo gole da cerveja e ficou em silencio, olhando o nascer do sol em meio a pequenos prédios de quatro a seis andares. O céu ia tomando uma coloração de dourado, como um mar de ouro que empurrava aguas escuras para longe. Kurt teve essa impressão ao ver o céu e desejou que isso representasse a verdade, que o dia viesse para arrastar o que aconteceu na noite passada para longe, mas sabia que não era assim que funcionava o mundo.

Estremeceu quando uma brisa trouxe o cheiro de mato seco e depois, o cheiro de sangue e perfume de Yigal, o tirando daquele pensamento sonhador.

- Para aquelas duas pessoas da sua mente, você era Deus. – Sorriu e jogou a latinha longe, caindo sobre uma pilha de outras latas que só agora Kurt notou que existia em meio ao mato alto. – Sabe, os budistas acreditam que tudo seja pensamento, inclusive nós, meros pensamentos de Deus, e agora estamos em Malkuth, ou seja, o reino, e como não podemos ser deuses aqui, podemos ao menos sermos reis, e reinarmos com sabedoria.

- Que viagem... – Se permitiu um riso, mas logo lembrou de Acqua sendo baleada para protege-lo. – Quero salvá-la Yigal, ela se pôs na frente do tiroteio para me salvar, eu devo isso a ela.

Yigal assentiu, os olhos cansados estavam sérios e cheios de compaixão. Ele coçou a barba rala que mais parecia pelos de um cachorro branco, pegou no ombro de Kurt e sorriu.

SúditoOnde histórias criam vida. Descubra agora