Giarre, 1985
Dafne tinha quinze anos quando ficou cara a acara com seu pai. A noite da cidade de Giarre estava abafada, uma pequena chuva caiu logo no fim da tarde, mas o calor nos tijolos e concreto evaporaram a agua, deixando uma nevoa morna e úmida. Dafne detestava coisas mornas, era uma pessoa tipo oito ou oitenta, ou vai ou racha. E naquela noite em especial, decidiu ser oitenta, encontrar seu pai e tirar satisfação do porquê de sua escolha. Porque escolheu Thomas ao invés dela.
Gasparetto fechou a porta de ferro, puxando e descendo até o chão, fechou com um cadeado e deu por encerrado mais um dia de trabalho, contudo, seu dia estava longe de acabar. Verificou se o cadeado estava realmente trancado e levantou, batendo as mãos uma na outra. Trabalho concluído, pensou, mais um dia. Deu as costas para a oficina e alguns passos em direção a sua casa, mas logo viu Dafne sentada em um banco de cimento, não como uma pessoa normal, mas como uma adolescente fazendo jus a sua idade, sentada em cima do apoio das costas, os pés em cima do banco e um sorriso nervoso e afetado nos lábios.
Gasparetto conhecia aquele sorriso afetado, conhecia aqueles cabelos ruivos e aqueles olhos verdes, mas acima de tudo, conhecia aquele brilho nos olhos. Não precisaram de apresentações, sabiam que eram pai e filha, que eram unidos não só pelo sangue que corria em suas veias, mas por algo ainda maior, um elo que ia além de apenas uma ligação física. Ele olhou para os lados procurando Salvatore ou Scarlet, procurando peões ou talvez peças mais importantes, e se sentiu péssimo por não carregar pelo menos um revólver consigo. Tinha uma escopeta na oficina, mas a oficina agora estava muito bem trancada. Deu alguns passos em direção a garota que balançava nervosa a perna direita, as mãos unidas e entrelaçadas, os cotovelos apoiados nos joelhos. Via seu pai, sem dúvida, mas via algo ainda muito mais superior a ela, e o ciúme de não ter sido escolhida por aquele ser superior aumentou ainda mais.
- Dafne, você veio me procurar. Eu imaginei que esse dia chegaria, não imaginava que seria tão cedo.
- O que esperava? Que eu ficasse quieta e em silencio como uma boa garotinha enquanto um rapaz bocó e cabeça oca tomasse meu lugar de direito? Eu vi seu querido Thomas, para pessoas como eu e você, para nós que temos o brilho nos olhos, que somos despertos, Thomas parece uma criança retardada.
Gasparetto respirou fundo contendo a pequena raiva que sentia ao ouvir seu filho sendo insultado. Entendia completamente o desgosto e a raiva que Dafne sentia, afinal, tinha sido criada por Salvatore, provavelmente. Scarlet nunca jogaria sua filha contra o pai, mas naquela fatídica noite as coisas não aconteceram como deveriam e Scarlet escolheu ficar ao lado de Salvatore. Também não a culpava, não tinha esse direito, falou com todas as palavras o que disse para Scarlet e Salvatore:
- Eu escolhi Roseta. — Disse e continuou. — Você e Thomas não tem nada a ver com a minha escolha. Por mim, eu criaria os dois, mas minha esposa nunca aceitaria isso, além do mais, você nunca aceitaria isso pois tem o brilho nos olhos, na sua idade... — Se aproximou alguns passos, mas Dafne tirou a mochila das costas com velocidade e enfiou a mão lá, fazendo um sinal de negativo com a cabeça. Gasparetto entendeu. — Você não aceitaria uma vida medíocre como a que levamos aqui. Thomas não é muito esperto, seus filhos provavelmente nem saberão o que é o Reino. Isso vai acabar comigo, minha linhagem não vai herdar o reino.
- Não acaba, você ainda tem uma herdeira, esqueceu? Eu existo, pai, e queira você queira não, eu vou tomar seu lugar, vou me tornar uma Rainha e vou reinar em Malkuth.
- Meu Deus Dafne, você deveria estar brincando com bonecas, não...
Dafne retirou um revólver da mochila, pequeno e negro, e apontou para o peito de Gasparetto. Ele não levantou as mãos ou se sentiu intimidado, apenas cauteloso. Cauteloso e arrependido, sem dúvida, Salvatore havia moldado Dafne a seu bel prazer, um reflexo de seu próprio egoísmo, e agora aquela pequena garota que não sabia nem ao menos cozinhar um arroz estava apontando um revolver para seu pai biológico, com noções de Cabala que nem ao menos deveria ouvir falar nessa idade.

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Súdito
Misterio / SuspensoOs contadores de histórias não se importam em registrar e contar histórias de pessoas comuns, de camponeses, mas sim de heróis, reis e deuses. Kurt não sabe que pode se tornar um Rei, mas Leônidas sabe, e colocará a prova a realeza de Kurt. Contudo...