Capítulo 2: Agarre as suas lembranças e olhe para os pássaros

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A luz quente de verão era filtrada pelas cortinas azuis da sala, e iluminava a face enrugada, porém muito simpática, do homem na poltrona. Ele balançava um copo de suco, fazendo o gelo tilintar nas bordas. Seus olhos cristalinos fitavam a mesa de centro, para ser mais específico, um barquinho de madeira que estava sobre ela.

Em momentos muito específicos, onde o caos impera sobre a vida e o silêncio dos pensamentos é a única escapatória para a paz, algumas mentes simplesmente desvanecem, levando-nos a trilhar o caminho dos sonhos, porém, acordados. Para Olip, fora quase como se uma memória muito precisa acertasse-o na cabeça.

— Já pensou em ser da marinha?

— Já — O menino entrou no cômodo, carregando uma bandeja de sanduíches de presunto.

O garoto franzino pôs um sanduíche num prato e entregou-o ao velho, depois sentou-se no tapete, fitando o próprio copo de suco ao lado. Ele tinha os cabelos bagunçados, o menino, mas a roupa parecia indicar que fora a algum evento. Não tinha mais sapatos nos pés, mas as meias brancas, já encardidas, continuavam ali.

— Você daria um marinheiro muito bom.

— Já disse isso — Disse com a boca cheia.

— Porque é verdade, seu esfomeado — O velho permitiu-se comer um pedaço, tendo dificuldade de engolir pela ausência de dentes — E o que está fazendo sentado aí no chão frio? Vai pegar uma pivocondria!

— Uma o que?

— Pivo-Pivoconvia.

— Pneumonia?

— Isso!

Olip bebeu todo o suco no copo, servindo-se de mais um sanduíche. Fitou rapidamente o quadro de um monte esbranquiçado.

— Queria ser alpinista.

— Aqueles caras que fabricam pinos?

— Não! Queria escalar montanhas. Deve ser muito legal e perigoso.

— Ah! Perigo é vir um tubarão e comer metade da sua mão! Isso é perigo!

— Isso nunca aconteceu com o senhor.

— Mas aconteceu com um amigo meu!

Olip percebeu algo diferente na feição enrugada de seu avô, havia algo estranho, como se as cores da luz desbotassem a pele. Fitou ao redor, percebendo que tudo estava se desbotando, murchando. A luz que vinha da janela desapareceu, imergindo os dois em uma escuridão completa.

— Vô? — Perguntou, temeroso.

E então, desse sonho tão real, que não necessitou do descanso do corpo, o menino despertou por conta de uma explosão ao longe. Percebeu que estava debaixo de uma barreira de madeira, entre barris e baús, com os joelhos encostados no peito, na penumbra da balaustrada.

— Eu sei que está sendo difícil, Dalton, não precisa diss—

— Eu cuido disso, Pávrio — Olip viu o cartógrafo, o homem de vermelho, conversando com um outro tripulante.

Olip percebeu que Dalton não parecia bem. Sua postura e sua voz aparentavam extremo cansaço. A face carregava uma feição apática, como um ser morto ou sonolento.

— Tripulação do Cartelam! — Olip o ouviu gritar — Continuem trabalhando! Continuem atirando! Informe ao Porta-Botas que o capitão exige um bloqueio de nossa embarcação! Porta-Botas à Boreste! Agora!

Dalton varreu a embarcação, até que os olhos recaíram sobre Olip. O cartógrafo avançou para o menino, desviando das multidões de homens e mulheres de largura desproporcional. Agora o homem estava à frente do menino, pontuando as feições cansadas da face com um ar de dúvida.

Além da Coroa e do Nevoeiro [CONCLUÍDA]Onde histórias criam vida. Descubra agora