Capítulo 23: Evento

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Sinto-me no encargo de descrever o motivo das lágrimas que verteram pela face daquele pequeno menino em sua noite mais confusa. É, por obrigação moral, que eu deva dissertar sobre o motivo disto, o motivo da criança derramar pela face o dom de sua lágrima, o dom de sua revolução. O ser, para que chegue ao estado de comoção, seja pela solidão ou alegria, faz uma reação química complexa incorrer pelo próprio sangue. É o próprio organismo humano, influenciado pelo movimento das placas tectônicas, que dispara, trazendo devastação no mar, na crosta, erguendo o oceano em grandes volumes. A lágrima é o equivalente de um tsunami, pois ambos necessitam de um mesmo elemento para ocorrerem, um evento.

Para que a grande onda chegue ao litoral, algo imensamente abissal acontecera. Para que a lágrima desabroche nos olhos, uma revolução interna já começou.

Pois, então, o que fora este evento?

Não é nele que encontraremos a resposta.

Quando o homem eleva os olhos para o firmamento noturno, encontra elementos demais para contar, entretanto, o que mais comumente se atenta é à cor, ou a ausência dela, no negror celestial. No alto, aonde os olhos pequenos podem vislumbrar, as estrelas estão sempre lá, decorando a escuridão como pontos iluminantes, ou flocos de neve, ou luzeiros, ou como a presença do passado. O ser que não se dá o trabalho de avaliar o que vê, faz com que a paisagem morra, mas sob olhos muito específicos, o céu da noite torna-se algo digno de ser analisado.

O que há em comum entre o evento da lágrima, o céu obscurecido e o palácio interno humano? Por vezes, o vazio.

Além da camada que o ser enxerga de nuvens, muito além de tudo o que sua mente consegue imaginar, há o vazio espacial, aquele onde o som não atravessa. Este vazio implacável, que rodeia os diversos mundos, constitui tudo que sofre de ausência.

Se existe algo mais implacável que o oceano, é o vazio externo; se existe um espetáculo mais complexo que o vazio externo, é o interno.

Portanto, por mais que estejamos cobertos e envoltos de matéria, por fora, existe a ausência de tudo, e por dentro, o ser que negligencia a própria alma, também sofre desta ausência.

O vazio que pavimenta as estradas do ser humano é por vezes traiçoeiro, pois lida com tudo e influência em tudo. É como o veneno que não mata, mas a vítima definha. É como tortura, onde por vezes a morte é mais desejada do que aquele resquício de vida.

Tudo ocorre a partir de um evento.

A onda violenta a costa pela colisão das placas.

As estrelas são cobertas pelas nuvens, obscurecendo o céu.

A lágrima percorre a face por conta da ausência.

A ausência constitui o ser humano como um palácio, cuja tríplice é a ausência do amor, da presença e do perdão. Este palácio chama-se vazio.

Portanto, cada um destes acontecimentos demandaram de um ou mais eventos.

Chamo isto de revolução.

O vazio que se alarga como a boca de um monstro só pode ser preenchido por algo maior. Ode aos meus buracos negros. Ode ao meu vazio. O ser que vive a expandir o vazio interno, mais cedo ou mais tarde estenderá a mão para o alto, pois percebe tardiamente que está se afogando em si mesmo.

O indivíduo que acopla uma parte de si a outro ser, é fadado ao erro e à fragmentação. O vazio que decorre da perda é mordaz, que por vezes, parece ser a solução, maquiando-se de luto e vestindo uma roupa aprazível. A ausência será sentida onde estiver um jarro contendo uma semente de amor. É normal. É comum. É a vida.

A passagem do tempo separa os eventos; os eventos, influenciam as escolhas; as escolhas, são a nossa única ferramenta que bifurca o caminho entre o céu e o inferno.

O ser que perdeu alguém que muito amou, sentirá a ausência da doação, da doação de amor que fazia. Com o tempo, depois os estágios, notará a ausência, que de translúcida transforma-se num planeta. É como a planta, que não precisa ser regada todos os dias, mas em certos períodos. O ser que dispõe o tempo de vida para regar a morte com as lágrimas, perde aos poucos a própria vida em função daquele que já a perdeu.

Além da Coroa e do Nevoeiro [CONCLUÍDA]Onde histórias criam vida. Descubra agora