Vênus

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Era difícil dizer quem estava mais nervoso: Cupido ou Rafaella. Os irmãos deslizavam sobre o piso lustroso como se o mesmo fosse levá-los para a condenação eterna perante Plutão. O mais velho sabia que ele dificilmente seria castigado, mas temia que sua irmã não teria a mesma sorte, e era com ela que se preocupava mais.

- Então, vai me contar os detalhes da sua última missão ou terei que recorrer ao relatório – A Deusa apontou para um imenso amontoado de pastas cor de rosa, que estavam empilhados sobre uma pequena mesa de metal, entortando os pés da mesma para o lado de fora.

A mera possibilidade de sua mãe ter lido o conteúdo daquelas pastas fez o estômago de Rafaella torcer, pois ela sabia que suas chances de misericórdia só diminuiriam caso ela descobrisse de uma fonte que não a própria filha. A cupido tentou falar, mas sua boca seca a impedia.

- Foi uma missão como outra qual-.

- SILÊNCIO, CUPIDO! Eu quero que Rafaella me diga – Ignorou a presença do filho, e encarou Rafa nos olhos, como se tentasse desvendar o segredo que aquele mar verde escondia.

- Mã-e, foi uma missão um pouco, er, diferente das anteriores – Tentava não focar nas falhas que sua voz insistia em mostrar, e sim na história real e preocupante que estava a contar.

- O que a tornou tão diferente? A missão... ou o alvo? – Algo na voz da mais velha delatou a certeza por trás daquelas palavras, e confirmou o que os cupidos mais temiam: Vênus sabia. E se ela sabia, então certamente já tinha as consequências devidamente escolhidas também.

Uma sensação de impotência tomou conta de Rafaella, que preferiu ser honesta, não só com a mãe, mas consigo mesma também. Estava cansada de fingir que seu coração ainda lhe pertencia, e se iria sofrer eternamente, que as pessoas pelo menos soubessem o porquê de seu sofrimento.

- Primeiro foi a missão. Afinal, não é todo dia que me deparo com a graciosa tarefa de achar o amor de alguém que merece vivê-lo – Dois pares de olhos azuis a observava atentamente, um lhe estudando como uma preza prestes a escorregar, e o outro em puro desespero para que ela se calasse o mais rápido possível. Ela não fez nenhuma das duas coisas, apenas continuou sua explicação - Porém, não demorou muito para que o alvo tomasse conta de minha atenção. A complexidade de porquês no caso de uma mulher quase perfeita estar solitária me fisgou para o caso de uma maneira que me senti obrigada a imergir completamente na situação. E foi por isso que, pela primeira vez, utilizei de minha magia para me tornar visível para meu alvo, e participar ativamente de sua trajetória rumo ao amor.

- Você considera que tomou uma boa decisão, Rafaella? – Sua garganta ameaçou secar, mas ela forçadamente empurrou migalhas de saliva goela abaixo e retrucou sua mãe.

- Pensando no cumprimento da missão? Não – Torcia para que Vênus não lhe pedisse explicações, pois não tinha certeza que suas unhas tivessem mais espaço livre em sua carne para perfurar.

- E pensando no seu alvo, a garota Gizelly? – Ouvir o nome da engenheira trouxe um turbilhão de emoções para seu corpo, que se expressavam através de tremores fortes em suas extremidades. Sua mãe saber o nome da morena não poderia ser um bom sinal, pois a Deusa do Amor nunca absorve informações que não lhe trarão algum tipo de vantagem. Um sinal de alerta fora ligado.

- Também não – Afinal, ser abandonada em uma cidade que não é a sua por uma estranha, e correr risco de ser aniquilada por uma Deusa insana estava longe de ser algo que as pessoas desejavam para si e para quem amavam. E Rafaella a amava. Agora, beirando a condenação eterna, podia admitir isso, mesmo que fosse para seu solitário coração. Amava Gizelly, e se tivesse que morrer por ser um receptáculo desse sentimento, que assim fosse.

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