Capítulo 2

218 11 0
                                    

Novembro de 2022

      Tremo um pouco com a brisa suave que beija meu rosto, dando-me boas-vindas para o inverno. Uma fina camada branca cobre as tábuas de madeira do porto e só tenho como imaginar o quanto a água deve estar congelante.

      — Boa noite, senhorita Anne — alguém me cumprimenta enquanto passo.

      Meneio a cabeça em resposta, sem saber ao certo de quem se trata e continuo minha caminhada. Não há muita movimentação essa noite no vilarejo, o que é perfeito para o que tenho em mente.

      Paro por um momento, apreciando a maior casa de Sheepfyeld. Bem no topo da colina. O coração do vilarejo. Parece até dizer: olhe só para mim, eu sou o centro da ilha, sou intocável.

      É o que veremos.

      Segurando firmemente os dois galões vermelhos de gasolina, entro no casarão. Ele ainda está em boa forma, há contar que já faz um ano que ninguém vem aqui.

      Solto um dos galões e estico o braço a frente do corpo, limpando as teias de aranha, para conseguir passar. Giro o corpo observando a madeira desgastada.

      Minha mãe e eu, vivíamos mais navegando em Meratriz, mas passávamos um tempo aqui também. E eu tenho tantas lembranças daqui...

      Eu adorava quando Emma tinha seus negócios no vilarejo, porque eu podia brincar e correr pela areia da praia. Subo as escadas, os degraus rangendo enquanto passo. Ando pelo corredor, até parar em frente a segunda porta a direita. Abro-a e cruzo os braços, me apoiando no umbral.

      O cheiro de mofo invade minhas narinas. Aqui era o meu quarto. O cômodo é como o restante da casa, de madeira branca. Não é um quarto comum de uma menina, rosa e cheio de brinquedos. É simples e monótono. Respirando fundo, passo pela
porta.

       Me abaixo no chão e empurro uma parte do grande tapete preto, a poeira tomando o ar. Encontro a irregularidade no piso e o puxo, retirando um quadrado da madeira. Nem penso nos insetos ou outros seres que podem estar no buraco, quando enfio minha mão nele. Meus dedos encontram um objeto sólido e trago-o para mim.       

      Uma caixa.

       Me acomodo no chão, com as pernas cruzadas e a caixa em meu colo. Um pouco relutante, abro a tampa branca. Retiro alguns brinquedos, mas mantenho o ursinho de pelúcia uns segundos a mais nas mãos. Ele é azul e tem um botão no lugar de um dos olhos. Suzzy me deu ele. Na verdade, a caixa toda é mérito dela. Limpo algumas das lágrimas que insistiram em sair e balanço a cabeça, determinada a continuar.

       Passo por mais algumas lembrancinhas até encontrar um caderno rosa. Assopro a poeira da capa e abro o álbum de fotos. A maioria das fotografias são de mim abraçada com Suzzy e vê-la depois de quase um ano, mesmo que seja através de uma imagem, me faz querer chorar mais, porém eu consigo engolir o choro e passo por outras fotos com Emma e outros piratas. Mesmo pela polaroid, minha mãe revela sua personalidade.

      Está séria em todas elas.

      Pisco, confusa, quando encontro uma página faltando. Passo os dedos pela parte rasgada. Eu posso te-la arrancado quando criança e não me lembrar, mas algo me diz que era importante. Fecho os olhos e suspiro, fechando o caderno. Guardo tudo novamente dentro da caixa e encaixo-a no seu lugar habitual, embaixo do piso. Lembro-me de tê-la colocado ali para esconder meus pertences mais íntimos de minha mãe. Eu sabia que ela tiraria tudo de mim.

      Levanto-me e pego o galão de gasolina que havia deixado no corredor e, sem mais demoras, despejo o combustível por todo o cômodo, seguindo pelo corredor, até não restar uma só gota. Rapidamente, desço as escadas e pego o segundo galão, fazendo o
mesmo no andar debaixo. Volto para o meu quarto e sem ter tempo para me arrepender, enfio minha mão no bolso do meu casaco. Encontro o isqueiro zippo prateado e o acendo. A chama tremulando nas sombras. Em uma respiração, jogo o isqueiro dentro
do cômodo e o vejo sendo engolido pelo fogo.

       — O que é isso? — A voz parece distante — Anne? Ai, meu Deus. Saia daí.

       Um puxão me faz acordar. Começo a tossir por causa da fumaça, enquanto Liam me carrega para o lado de fora da construção ardendo em chamas.

       — Não conte isso a ninguém — ordeno ao meu marujo.

       Algumas pessoas se aproximaram por causa do incêndio e estão tentando apagá-lo.

      Começo a me afastar dali.

       — Sei que não é da minha conta, mas vai me perdoar, capitã, estava tentado se matar?

      A pergunta de Liam me faz parar.

      — Não, não se preocupe. Agora tudo voltou a ficar no passado, onde sempre deveria ter ficado — respondo-o, sem me virar e volto para o navio.

                                               ***

      Um barulho me faz acordar.

       — Anne? — A voz de Jacob soa atrás da porta.

      — Pode entrar — ajeito-me até estar sentada na cama.

     — Perdoe-me a intromissão, capitã. — Jacob se desculpa — Mas eu estava de vigia no cesto da gávea e vi que um navio se aproxima. Eu realmente tinha que avisá-la...

      — Um ataque? — levanto minha cabeça em direção a janela redonda no canto esquerdo, a luz da lua cheia me dando uma boa visão do exterior.

      — Receio que sim.

      — Qual é a distância? — Tento avistar ao longe, mas não vejo nada daqui.

      — Umas cinco milhas náuticas... ah e capitã?

      Levanto minha cabeça em sua direção.

      — Eu vi o símbolo na bandeira deles...

      — E? — Interrompo ele rápido, vendo receio em seus olhos.

      Ele faz uma pausa, seu suspense fazendo-me ficar apreensiva.

      — Jacob?

       — Temo se tratar de Benjamin, senhorita.

Coração PirataOnde histórias criam vida. Descubra agora