Capítulo 6

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Verão de 2011

       — Anne! Eu sei que você está aí, apareça!

      Abafo minha respiração com as mãos, para que ela não me escute.

       — Sua garota tola!

      A voz, que sempre me causa arrepios, continua a me chamar.

      Ouço seus passos se afastando e alívio me toma quando percebo que ela desistiu.

Saio do meu esconderijo e percebo tarde demais que cometi um erro. Minha mãe me puxa pelos cabelos, me arrastando pelas tábuas de madeira.

       — Mamãe, por favor — imploro, em prantos.

       — Como ousa se esconder de mim?

       — Eu estava com medo.

       — Dizer isso só me irrita ainda mais. Não lhe ensinei a ter medo, isso é para os fracos.

      Ela me solta e sinto um segundo de alívio, antes da dor ensurdecedora que vem quando bato o rosto na madeira rígida.

       — Você só tem a mim. Ninguém nunca irá lhe amar como eu.  — Minha mãe cospe as palavras e elas são como facas rasgando a minha pele.

      E o pior de tudo isso, é que eu acho que ela tem razão.

       — Agora, limpe todo o convés. É sua punição por ter me desrespeitado. Depois, voltaremos para a leitura. Você sabe o que eu sempre digo.

      Dominar a arte de ler e escrever não é comum no lugar onde moramos, mas se você souber fazer isso, poderá fazer qualquer coisa.

      Mesmo que minha mãe se irrite facilmente e sempre bate na minha mão quando erro qualquer palavra, a agradeço muito por estar me ensinando. Sou intelectualmente mais desenvolvida do que as outras crianças costumam ser — na verdade, do que a maioria das pessoas costumam ser — e eu realmente amo ler.

      Com isso em mente, me apresso em limpar o convés. O esfrego bem e vislumbro meu trabalho. Desço para o convés inferior e sigo para a cabine da capitã, onde Emma está.

       — O chão está limpo?

       — Sim, mamãe.

       — Muito bem, tenho uma nova obra para você hoje, chama-se: A Alexíada. É um relato épico da história política e militar do Império Bizantino. Leia o prefácio.

      Me sento e mamãe arrasta um manuscrito antigo pela mesa de madeira perfeitamente polida. Passo os olhos para as palavras escritas ali, as pronunciando na mente antes de lê-las em voz alta.

       — O tempo, no seu fluxo... — leio devagar e levo mais tempo para decifrar a próxima — irresis... irresistível e...

      Paro a leitura quando sinto minha mão latejar.

       — Continue — mamãe ordena após açoitar meus dedos.

      Nem ouso olhar, mas sinto o sangue escorrendo pelos meus dedos frágeis.

       — ...Incessante, arrasta consigo todas as coisas criadas e afoga-as nos abismos da... — a palavra seguinte é um pouco mais difícil, mas com minha pronúncia silenciosa a desvendo — obscuridade, onde não existem feitos dignos de menção...

      Continuo a leitura e só erro mais uma vez. Só mais uma açoitada e minhas mãos doem, mas já aprendi a camuflar a dor.

      Estou muito melhor na leitura, mas é claro que mamãe não diz isso. Ela nunca me elogia, diz que isso me faria fraca, que elogios são uma ilusão, nada mais do que mecanismos de dependência. Só devo parar de fazer alguma coisa, quando eu mesma souber que está bom. Mas não apenas bom. Tem que estar perfeito.

      Finalmente me obrigo a olhar para as minhas mãos. Para as feridas já quase cicatrizadas e para as novas.

      No começo eu odiava a forma como ela me ensinava, odiava os cortes, mas agora não me importo mais. Eu me sinto privilegiada e era o que ela me dizia sempre.

      Esse é um privilégio que muitos não podem ter e, se você o tem, aprenda a agradecer, essa é a sua sorte.

      Minha sorte.

Coração PirataOnde histórias criam vida. Descubra agora