Capítulo 18

84 7 0
                                    

Dezembro de 2021

      Dezembro é o mês mais paradoxal.

      É seco e chuvoso. Frio e tórrido. Uma linha irregular no tempo, desenhada por mãos trêmulas e inquietantes.

      Era o que já se esperaria do inverno, mas ainda assim, a falta da flora verdejante me desgasta.

      Não é de se admirar que eu tenha nascido no dia doze de dezembro. Bem no meio de toda essa irregularidade desenfreada. E, com certeza, não é à toa o que está acontecendo bem na minha frente.

      Não é como se eu estivesse surpresa, isso sempre acontece. Somos piratas. Vivemos em batalhas, sempre saqueando. Mas ainda assim não consigo segurar o líquido salgado que desce pela minha bochecha.

      Emma, minha mãe, está caída sobre a neve. Manchas vermelhas se espalham ao redor de seu corpo, degradando a branquidão.

      Minhas pernas tremem e eu caio de joelhos em meio aos flocos congelantes. Nem consigo me preocupar com o frio agora, não que eu esteja sofrendo por uma mulher que sempre insistiu em ser cruel comigo. É a mulher de cabelos loiros adormecida ao seu lado que está me fazendo chorar. Suzzy.

      Peguei o pequeno livro, o apertando contra o peito. Era um exemplar de Alice no país das maravilhas. Eu sempre o lia, escondida, já que mamãe insistia que eu devia ler somente os livros clássicos que ela mandava eu ler. Mas eu me diverti muito mais com aquele. Me diverti imaginando como seria lá fora. Como seria se eu entrasse no buraco do coelho e fosse para o país das maravilhas. Diriam que eu já era um pirata e viajava muito pelos sete mares, mas eu queria o sentimento de ser livre. De ir além disso. Não queria ser privada de nada, ser uma loba solitária vagando por toda a imensidão de terra e de mar. Eu era uma menina muito grande para caber num lugar tão pequeno. Mas, diferente de Alice, eu não queria tomar o antídoto.

      — O que você está fazendo aí?

      Meu coração quase saltou pela boca. Minha mãe estava parada, muito perto de mim, perto o suficiente para ver o livro. Como eu pude não a ver se aproximar?

      — Na... nada, mamãe — gaguejei.

      — Que livro é esse que você está segurando? — seu olhar estava desconfiado.

      Tentei inventar algo, mas ela foi mais rápida e o pegou. Segurei uma respiração, esperando a explosão dela.

      — Alice no país das maravilhas? — Ela me olhou, irritada. — Você sabe que não pode ler esses livros, só os que eu digo para você ler.

      — Eu sei, mas...

      — Mas o quê? — Ela pressionou — Você estava tão absorta em pensamentos que nem notou quando cheguei... estava sonhando acordada? — Ela zombou — Sonhando com o mundo lá fora?

      Virei minha cabeça, olhando para baixo.

      — Olhe para mim quando eu falo com você! — Sua mão, nada delicada, levantou meu queixo para cima — Eu não lhe ensinei nada?

      — Ensinou sim...

      — Então pare de agir como se não. O que as pessoas podem pensar de mim? — Minha mãe pareceu ofendida.

      — Me desculpe, mamãe — as lágrimas ameaçaram surgir, mas as contive.

      — Ora querida, você é muito jovem para fazer ideia do quanto o mundo é cruel e complicado. Seja o que for que você estivesse pensando agora, afaste-o. Está me ouvindo? — Ela falou mais alto — Afaste-o. Eu sei como as coisas realmente funcionam e não dariam certo para você. Seu lugar é aqui e não quero mais saber desse livro. Estamos entendidas?

      Fiz um aceno com a cabeça.

      — Eu quero que você diga — sua pressão no meu queixo aumentou.

     — Estamos entendidas, mamãe — engoli em seco.

     — Ótimo. — Ela estava aliviada — agora vamos voltar para Meratriz.

      A segui pelo cais. Era tudo o que sabia que fiz, porque entre aquele momento e o que estava dentro da minha cabine, fiz tudo no automático. A vida foi tirada de mim. Qualquer ponta de esperança havia morrido como todas as borboletas no meu estômago. Pelo que pareceu, mamãe me deu o antídoto à força e eu fiquei pequena demais. O pequeno espaço ao qual eu vivia, tendeu a ser grande o bastante.

      — Querida?

      A voz doce de Suzzy me fez levantar a cabeça.

      — Por que está chorando?

     — Não é nada, aia — limpei as lágrimas.

      Ela, então, se aproximou de mim.

     — Venha aqui — ela abriu seus braços.

      Corri até ela, que me envolveu em um abraço apertado e reconfortante.

     — Não importa o que sua mãe diga, você pode fazer tudo o que quiser. Você merece conhecer o país das maravilhas.

      — Anne, você precisa sair daqui.

      Sinto quando me levantam e levam-me para longe do corpo inconsciente de Suzzy.

      — Solte-me! — Empurro o braço de Henry.

      — Senhorita, você corre perigo aqui.

      Olho ao redor, para a batalha que ainda acontece. Avisto Carter em meio a tudo isso e ele me olha de volta. Seus lábios se curvam em um sorriso asqueroso e ele levanta a adaga ainda suja de sangue. Aquele filho da puta.

      Rapidamente parto para me desvencilhar de Henry.

      — Senhorita!

      Meus ouvidos tamborilam de raiva e eu não ouço mais nada. Corro em direção a Carter, pegando minha espada.

      — Diga!

      — Dizer o que?

      — Por que a matou?

      — Para não termos nada no nosso caminho, agora poderemos ficar juntos.

      Lanço a ponta afiada em sua direção que a cruza com a sua própria.

      — Eu não falo da minha mãe, eu falo de Suzzy!

      — Ela também era inconveniente.

      — Você a assassinou, eu não quero nada de você.

      — Anne, eu sei que você está com raiva agora, mas você vai entender depois. Eu esperarei até que você saia do luto e, assim, possa pensar com clareza. Ainda vamos nos casar...

      — Não!

      Tento acertá-lo novamente, mas me sinto frágil e meus joelhos cedem. As lágrimas tomando lugar.

      — Ela era a única pessoa que eu tinha e agora, o que me resta? Ficar sozinha para sempre? Estou com medo.

      Não gosto de estar me abrindo para esse imbecil, mas não consigo evitar as palavras de saírem.

      — Você tem a mim, lembra? Case-se comigo...

      — Afaste-se dela — Liam empunha sua espada, colocando a ponta em direção a garganta de Carter.

      Se abaixando, ele passa um de meus braços por seus ombros e me levanta.

      — Cuide dele, Mateo — Liam ordena ao pirata que está próximo.

      — Minha proposta será estendida, Anne e eu voltarei a lhe perguntar — Carter diz para mim, antes de acabar com a vida de Mateo e fugir.

E eu vejo tudo isso sobre o ombro de Liam, enquanto ele me leva a Meratriz, me tornando a nova capitã.

Coração PirataOnde histórias criam vida. Descubra agora