Capítulo 5

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      Acordo e percebo que já é tarde. Vejo que já passam das quatro horas e me sobressalto. Nunca dormi tanto. Na verdade, eu não ando dormindo quase nada ultimamente. Meio sonolenta ainda, vou para o banheiro. Tomo um banho rápido e agora sim, me sinto desperta. Coloco uma roupa confortável e vou até a porta. Abrindo-a, encontro Elizabeth com o punho levantado.

      — Ah, oi. Eu estava prestes a bater aí.

      — Sim, deu para perceber — passo por ela.

      — Imagino que esteja com fome...

      — Estou bem.

      Elizabeth bufa.

      — É quase impossível manter uma conversa civilizada com você.

      — Então pare de tentar — encaro-a.

      Ela parece querer me dar um tapa agora, mas não o faz. Ao invés disso, se afasta. Deixando-me sozinha. Obrigada. Agradeço em silêncio. Subo até a área exterior do navio. Tentando absorver o lugar em que estamos. Bem, só estamos há dois dias de Shipwreck Coast, não poderia ser longe. O navio está seguindo para o leste. Me pergunto para onde.

       Olho para os dois botes posicionados em cada lado da embarcação e imagino-me fugindo daqui. Mas o horário agora não me convém, deve ser o pico, porque vários marujos passam por mim a todo instante. Esperarei a madrugada, então.

      Desço novamente, seguindo pelo local onde Elizabeth havia me instruído muitas horas atrás. Voltando para a cabine que dispuseram para mim, abro as duas gavetas da mesa de cabeceira. Nada de relevante, apenas carregadores, hidratantes, perfumes e joias. Vou até a penteadeira e só há produtos de beleza. No closet, apenas roupas e sapatos. Claro. O que eu esperava encontrar?

      Me sinto um pouco tonta. Eu só comi um pedaço de pão em muitas horas, talvez eu realmente devesse comer. 

      Abro a porta e saio para o corredor. Determinada a encontrar a sala de jantar.

      Passo por vários corredores e lances de escadas, até conseguir encontrar o que procurava. Nunca estive no navio de Drake e fico deslumbrada com a riqueza do local. Ainda mais com os pratos fartos dispostos nas mesas: salmões, calzones, ostras, bacalhaus, camarões, lagostins, pães sírios e vários grãos. Um perfeito contraste com a pobreza do meu navio, não que eu seja verdadeiramente pobre, tenho muitas riquezas, mas preferi manter a arquitetura simples, diferente de Benjamin.

      A parte reservada para as refeições é dividida em duas partes, uma formada por duas mesas grandes, postas para vinte pessoas cada, e a outra com uma mesa posta para quatro. É. Eu teria muito trabalho para fugir...

      Um pirata se aproxima de mim.

      —  Receio que não tenhamos nos apresentado cordialmente, sou Jack.

     Observo sua mão esticada sem reagir.

      —  Ora, pode se aproximar, eu não mordo — ele então abre um daqueles sorrisos sedutores que como diria Charlotte: de arrancar a calcinha — a menos que peça.

      Surpresa toma conta de mim. Elizabeth aparece e coloca as mãos nos bolsos de seu casaco.

      —  Até onde sei, Jack, ninguém jamais aceitou essa oferta.

      Me pergunto porque ninguém havia aceitado: o cara é abençoado por uma beleza sobrenatural.

      Como o capitão, ele tem cabelo preto e pele bronzeada. Mas diferentemente de Benjamin, os olhos têm cor de esmeralda e estão fixos em mim, quando eu, por fim, me aproximo.

      — Sou Anne, muito prazer — me apresento.

      O traje dele se resume à cor preta, casaco de lã, chapéu gasto, calça em tela dura e faixa suspensa nos ombros, com alfanje embainhada.

      — O prazer é todo meu — diz Jack e beija minha mão.

      — Ignore-o, — Elizabeth revira os olhos — ele é um idiota, mas é inofensivo.

      Jack mostra o dedo médio a ela, que se limita a sorrir. Afasto minha atenção de ambos e, então, avisto Benjamin. Como se me sentisse o olhando, ele levanta sua cabeça até mim. Seus lábios formam um sorriso deleitável, a expressão e reação esdrúxulas de ontem, totalmente esquecidas. Fico indignada diante de seu humor instável.

      Elizabeth e Jack se movem até a mesa com quatro cadeiras onde Benjamin está acomodado e eu os sigo. Eles se sentam e eu os imito.

      — Gostou do seu quarto, Anne? — O capitão me questiona.

      — De fato ele é mais agradável do que o calabouço.

      Benjamin coloca os cotovelos sobre a mesa e junta suas mãos, se voltando para Elizabeth.

      — Ela se comportou bem?

      — Efetivamente — ela pisca para mim. — Acho que nos entendemos. O que me diz, Anne?

      Eu poderia deixar meu lado que quer mandá-los se ferrar, juntamente com um gesto nada apropriado, cá entre nós é o com maior vontade de escapar, se manifestar. Mas claramente é um teste e eu preciso passar. Engulo esse desejo como um grande caroço que quase não passa pela minha garganta e me obrigo a sorrir.

      — Realmente.

      Pego a taça entre os dedos e a levo até a boca. O gosto adocicado do vinho, vindo a calhar.

      — Sabe, Benjamin. Tem algo que não se encaixa muito bem na minha mente...

      Seu olhar sobe até o meu.

      — Sim?

      — Essa é a sua punição para mim? — Digo o que venho me perguntando.

      — Eu já esperava por essa pergunta — ele arqueia uma sobrancelha — você fez um favor a mim, na verdade.

      — Ah é? — Pergunto, surpresa.

      — Sim, você liberou o caminho para eu poder me tornar capitão.

      Bebo mais um pouco do vinho. Na verdade, eu só ajudei. Jeanne fez todo o resto com Bruce. Já o pai deles... eu não sei o motivo de sua morte, a informação era tão restrita e confidencial, que até tentei arrumar respostas com a minha mãe, mas como sempre, ela se limitou a dar respostas vagas. As pessoas morrem, Anne. Ela disse. É a natureza da vida. A única certeza da existência humana. Ela completou.  

      — Se você não quer me punir... então o que quer?

      Benjamin sorri.

      — Não se engane, querida. Eu ainda quero te punir, mas não do jeito que imagina.

      Jack engasga em uma gargalhada e eu viro minha cabeça em sua direção.

      — Vocês exalam tensão sexual, por favor vão para um quarto.

      O sangue tamborila nos meus ouvidos e eu não consigo ficar sequer mais um minuto ali, por isso, sem ouvir mais uma palavra, me retiro da sala. Não me importando nem um pouco com a minha inadequação. Aliás, eu fui trazida aqui contra a minha vontade. Que se foda a etiqueta. Sinto minhas costas queimarem com os olhares colados em mim e desço alguns lances de escada, voltando para o quarto. Pelo visto passarei muito tempo aqui. Pelo menos até fugir. Toda essa socialização me dá vontade de vomitar.

Coração PirataOnde histórias criam vida. Descubra agora