Cap 53

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Escuto ele falar. Escuto cada uma das palavras que ele me diz, mas não reajo. Meu melhor amigo, Fresh Crayon, ele também mentiu. Mentiu pra mim, assim como Error mentiu.
Isso tudo já está ficando cansativo. Que ciclo de merda é esse?
-Ink...?-ele me chama.
Engulo seco.
-Eu me lembro da festa...-falo lentamente, como se estivesse andando em um campo minado na primeira guerra mundial-Me lembro de beber um pouco mas...-eu não sirvo pra ser um soldado, eu quero recuar-Mas... você, eu não.-sinto meus olhos encherem de lágrimas.
-Ink, desculpa não falar antes é que...
-Vocês são iguais.-falo sem pensar.
-Que?
-É de família? Esconder as coisas?-olho pra ele-Você esconde os olhos, esse tipo de coisa, mas eu não esperava que você fosse mentir pra mim.
Fresh parece se sentir ofendido mas também irritado.
-Olha, Ink, eu sou seu amigo, e como um amigo preocupado eu acho que foi bom eu ter mantido isso entre nós. Ou você preferia viver um escândalo enquanto você ainda estava com a Dream e não aceitava que você era gay?
Palavras realmente machucam, mas não sabia que poderiam quase te matar. Quase.
-Não importa, o ponto é que você mentiu!-minhas lágrimas caem, e já nem tenho certeza do motivo do choro.
-Eu não minto pra mim mesmo pelo menos, não acha?
Dou uma risada e inclino a cabeça pra trás.
-Uau, legal, vai falar o que agora? Que é burrice minha exigir respeito da parte dos outros? Ou falar que eu sou o culpado?-soluço no final-Se quer ir embora, a porta é cortesia da casa.
Fresh e eu ficamos em silêncio por um momento e ele se levanta. Meu coração aperta e eu fecho os olhos.

"Por que eu sou tão estúpido?"

Sinto ele me abraçar. Forte, como se quisesse me manter seguro.
-Eu não quero ir embora nem vou falar nada disso, Ink, eu te conheço.-ele se senta próximo de mim enquanto ainda estou chorando-Anda, é só falar. 
-Não tem o que falar.
Abraço meus joelhos em cima do sofá.
Fresh me observa enquanto pensa no que dizer, talvez por isso ele seja bom com palavras. Por mais que não pareça, ele é muito empático. Se você sente dor, ele entende ela e a acolhe como se fosse dele mesmo.
-Eu sei, a culpa é minha não ter te contado.
-Do que você tá falando?-quase sussurro de tão baixo que eu pergunto.
-Do que você quer falar?-ele dá de ombros.
Me calo.
Ás vezes, só ás vezes, é tão ruim quando alguém te entende bem. Porque você não consegue se esconder da dor como gostaria. Você não consegue não sentir, você não consegue conviver com essa dor... culpa, chame do que quiser. Não importa o que é, se você tem essa pessoa, você não consegue manter a sua rotina de aturar, e chega a ser irritante, porque ás vezes você não quer lidar com isso. 
-Nenhuma dessas coisas, eu não quero entrar em confusão ou numa discussão idiota.
-Você tá claramente doido disso, então não é idiota.
Minha respiração está um pouco ofegante.
Realmente eu pareço um soldado no campo de batalha agora. Não que eu não queira brigar, mas é assustador demais. Bombas estão espalhadas, armas miradas na minha direção, só tem uma pessoa próxima de mim e eu não sei por quanto tempo ela vai ficar comigo. Não tenho experiência nisso, então deve ser normal ficar assustado. Deveria ser normal eu sentir a morte chegando perto. Deveria ser normal sentir que a situação é maior do que é. Deveria ser normal eu reagir como um ser humano traumatizado naquela festa. Deveria ter alguém que me entendesse, alguém que me defendesse. Deveriam me compreender minimamente, mas eu sei o que pensam.
Quem viu a confusão me vê como errado. Quem não entende o que é o trauma de uma mentira, quem não passou seis anos sem nenhuma memória da sua vida porque uma família de riquinhos ou porque a própria família não  quis falar o que houve no dia 3 de Dezembro, não entende o motivo de eu ter reagido daquela forma a mais uma mentira dele. Posso até estar errado em usar a violência, posso até ter errado por simplesmente exigir respeito da parte dele, posso estar errado por estar bravo e descontar isso só nele, mas e minha mãe? Ela tem uma parte envolvida, ela mesma mentiu pra mim, e eu não exigi uma explicação. Eu sei, não sou perfeito, parabéns sou humano. Parabéns, todos erram e tem falhas, mas eu não deveria me condenar por isso. Ninguém deveria. 
Essa bomba do três de Dezembro foi algo "fácil" de sobreviver. Sai machucado, talvez sem uma parte do peito e da visão. Já que não conseguir ver o que me esperava naquela festa, e também porque não senti nada quando aquilo me atingiu no coração.
-Ink? Tudo bem?
-Por que você mentiu?-pergunto e ajeito minha postura.
Eu tenho que enfrentar isso.
Meus ferimentos podem ser profundos, mas se eu desejo tanto que alguém sinta empatia por mim, talvez eu devesse dar um passo para ser para as poessoas o que eu desejo para mim. Um amigo bom como Fresh. O namorado incrível que sei que Error pode ser se melhorar a questão da confiança. Eu quero ser... Eu quero ser eu mesmo. Aquele que minto para mim mesmo a anos que não existe.
-Eu não queria perder o meu melhor amigo.-ele olha pros pés.
-Eu que fiz a burrada de beber demais.-olho para ele.
-Eu que fiz a burrada de aceitar que você me beijasse bêbado.-ele me encara sorrindo sem graça.
-Oh...
-É.-ele ri-Faz tempo, você é todo do Error agora!-ele levanta as mãos pro alto-E eu já achei uma pessoa melhor...-ele fala o final meio aéreo.
Sorrio para ele.
-A pessoa tem sorte.
-Talvez eu que tenha.-ele murmura.
-Agora por que ajudou a esconder o dia três de Dezembro?
Ele coça a nuca.
-Eu queria te falar...-ele engole seco-Mas pra mim e pro Error, aquilo virou um acidente que a gente jogava a culpa um pro outro. Então as vezes eu achava que você ia me odiar por fazer parte disso. Sei lá, crianças não pensam direito. Porque no fim, eu acabei te usando indiretamente pra chamar atenção do Error, e bem...-ele olha para o meu pescoço e depois para mim-Não deu tão certo.
-Legal, mentiu pra mim e me usou.
-Você já fez a segunda coisa conosco também, lembra de todas as vezes que você queria chamar atenção dele? Ou do Geno? Ou do seu pai?-ele pergunta frio.
-Justo...
-Mas,-ele me interrompe e presto atenção-eu tinha pesadelo todas as noites com aquele acidente na primeira semana sua no hospital. Você entrando na minha casa com o pescoço sangrando, parecia um versão maluca e colorida de "O cavaleiro sem cabeça".-ele ri fraco-Sabe, Error não admite, mas ele também tinha esses pesadelos, mas diferente de mim, eles não melhoravam. Uma vez ele andou de bicicleta de madrugada, só pra passar na porta da sua casa e ter certeza que você tava respirando.
Abraço ele de leve e ele retribui.
-Eu ainda to puto.
-Sei disso.-ele dá de ombros-Quer gritar agora?
-Eu odeio o fato de vocês todos pensarem que eu não aguentaria receber essa notícia.
-O dia três foi traumatizante pra todo mundo, acho mais é que ninguém estava pronto pra falar desse dia.
-Nem mesmo minha mãe?
-Você tá bravo com ela?
-Pra caralho, e eu não aguento mais fazer a Monalisa e fingir que tá tudo bem.-começo a chorar.
Ele me conforta.
Realmente, eu não queria lidar com isso. Mas tem coisas que você não escolhe quando lidar. Eu não escolhi esquecer metade da minha vida e bater meu pescoço numa pedra. Eu não escolhi nascer, eu não escolhi essa vida, eu não escolhi amar a pessoa que até então eu mais odiava. Esse é o lado complicado da vida, você não controla tudo.
Esse é o lado complicado do amor, ele não segue planos.
Esse é o lado complicado de você amar o seu inimigo, você sempre vai ser surpreendido.
-Você não tem que fingir que tá tudo bem, Ink.-ele faz carinho no meu cabelo e volto a ser uma criança triste naquela casa da árvore, e Fresh e eu voltamos a ter oito anos e tomar sucos de caixinha fingindo que nada fora daquela casa importava-Você é humano, todo mundo se machuca...
Continuo chorando enquanto digo:
-Tá tudo tão ruim! Eu só queria...-soluço-Eu só queria poder me desculpar com quem preciso, Dream, Error, PJ.-seco minhas lágrimas-Queria tanto gritar com a minha mãe agora. Eu só quero... eu só quero soltar essa dor, esse ódio, essa culpa.
-Um passo de cada vez.-ele me faz ficar sentado no sofá-Que tal a parte das desculpas?
Seco as lágrimas e fungo. Jogo meu cabelo pra trás e suspiro.
-Como?-percebo como minha voz está frágil-Não sei onde o PJ mora, não sei se é uma boa hora pra falar com a Dream, e nem vou mencionar que eu bati no Error ontem...
-Bem...-me viro pra trás e vejo ele abrir a porta-Eu acho que to mais perto, e você já me mordeu uma vez, não vou recuar por um tapa.
Ele está com os cabelos presos como ontem, está usando lentes e suas roupas parecem arrumada demais. Ele parece nervoso, não por ter gaguejado, mas eu nunca vi ele tão arrumado, nem pras festas das nossas mães.
-Que emboscada do caralho em.-dou uma risada fraca.
-Peguei você.-Fresh ri e me dá um apertão-Vejo vocês depois, conversem direito, pombinhos.-ele diz indo até a porta e bate no ombro de Error.
Quando ele sai, encaro Error que ainda está na porta.
-Não quer se sentar?
-Por favor, to em pé na sua porta a um tempo.-ele diz dando uma risada fraca.
Ele se senta ao meu lado e ajeito minha postura.
-Quem começa?-ele pergunta.
-Desculpa... Não só pelo tapa, mas também porque eu...-as palavras garram na minha garganta formando um nó-Eu descontei toda minha raiva pelo acidente em você, e isso não é certo. Você não é culpado, você não escolheu sozinho em esconder. E eu reagi ontem de uma maneira muito exagerada.-olho para ele-Desculpa, Error.
-Eu te perdoo.-ele diz e eu respiro fundo, aliviado-Agora, é minha vez.-ele limpa a garganta-Desculpa, eu não deveria ter deixado você descobrir aquilo por terceiros, não deveria ter mentido pra você desde o início, desde que voltei a tentar algo com você. Relacionamentos precisam de confiança, mas...-ele abre e fecha a boca, planejando a próxima frase-Mas eu não confio em muita gente, é difícil tentar confiar em você ou em qualquer outro, mas eu juro que vou tentar melhorar. Na questão da mentira e da confiança, e eu não tenho mais nada pra falar, você já sabe de tudo que eu tenho guardado...-ele coloca a mão dentro do casaco-Ou quase tudo.
Ele tira de dentro do casaco dois bonecos de pano. Um se parece comigo, e tem manchinhas de tinta no rosto. E outro se parece com ele, mas ele tem umas linhas estranhas por debaixo dos olhos.
-Eu refiz umas coisas antigas que eu tinha, e bem, isso é de quando eu tava pensando eu falar tudo pra você. Não significa nada especificamente, mas é um presente que eu queria te dar a um tempinho.-ele estende os bonecos-Escolhe com qual você fica.
Inclino a cabeça pro lado.
-Não vai comprar meu perdão com bonecos.-sorrio de canto e ele sorri de volta.
-Eu sei que não.
-Eu te perdoo, mas não sei qual escolher.-olho pros bonecos-Todos são lindinhos.
-Não vai ter uma simbologia incrível, são só bonecos.
Olho para ele depois para os bonecos. Acabo escolhendo o que representa ele. 
Ele é fofinho por causa da carinha de puto.
-Esse?
-Uhum.-deixo ele na mesa- Me empresta o outro?
Ele estende a mão e deixo os dois um do lado do outro.
-E eles nunca mais brigaram.-Error diz e dou risada.
Os bonecos são o oposto um do outro, mas talvez por isso parecem se completar.
Olho para Error e ele olha para mim. Nossos olhares se encontram, e de novo chega aquela necessidade.
-Você vai mentir de novo?-pergunto olhando para seu peitoral, que sobe e desce junto de sua respiração.
-Não, sua mão é pesada, nem fudendo.-ele ri.
Nossas respirações estão sincronizadas agora.
Me aproximo dele ficando por cima dessa vez. Error cora e coloca suas mãos na minha cintura, nervoso, sabia que ele tinha se arrumado todo por isso. Mas se ele acha que vale a pena amassar uma blusa dessas por minha causa, eu não vou dizer que não. 
-Promete pra mim.
Ele engole seco.
-Prometo.
-Espero que esteja falando sério.
-Eu tô!
Dou um selinho nele. 
Nos encaramos de novo.
-Eu dei o primeiro passo, se vira.-rio nervoso ao falar.
Uma de suas mãos vai para o meu rosto, e do meu rosto para meus cabelos e nos beijamos novamente.
Talvez isso seja o começo.
O começo desse amor, e do meu verdadeiro eu entrar em  cena.

O Lado Complicado de Amar Seu inimigoOnde histórias criam vida. Descubra agora