Cap 54

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Alerta de gatilho:
Esse capítulo fala sobre violência doméstica, abuso psicológico e traumas. Caso qualquer um desses temas sejam sensível para você, pode pular esse capítulo, preze seu bem estar e saúde mental!
Para quem ficou: Ótimo capítulo para você

{...I hate you...}

Depois de um tempo, Error voltou para casa. Nós fizemos as pazes, então tá tudo certo até agora. Eu resolvi o que eu consegui resolver por hoje, e tá tudo bem, certo? Tipo, eu não preciso ser perfeito cem por cento do tempo mais eu não sou mais aquele Ink, dane-se tudo. Certo?

Depois de sair do banho eu entro no meu quarto e fecho a porta com força.
Ainda tem coisas me incomodando, muitas coisas tipo a porra da minha família. Porque... cacete, 6 anos me escondendo um acidente desses? Quem faz isso? Você não esconde isso de ninguém! 
Me deito e olho pro teto. 
Sabem, todos tem uma visão tão perfeita de uma família que nem parece que esse conceito foi criado só pra fazer com que os padrões de vida e estabilidade tivessem um custo maior. Parabéns, criamos padrões pra fazer a rodinha do dinheiro continuar ativa, viva ao capitalismo e a hipocrisia. A verdade? A verdade é que os casos de violência doméstica e abuso aumentam a cada ano. A verdade? Muitos traumas que temos hoje em dia vêm da infância. A verdade? Esse tipo de padrão que muitos estabelecem, custam mais do que dinheiro, custam, muitas das vezes, vidas. Uma pergunta: Vale a pena? 
Mas não quero falar disso agora. Eu acho.
Talvez por isso eu esteja tentando ligar pro meu pai as nove da noite. Pra ver se existe alguma esperança de nem tudo ser esse show de horrores.
O celular toca, uma. Duas. Quatro. Nada.
Tento de novo, ele pode estar dormindo né?
De novo, uma. Duas. Nada.
Ele vai acordar agora, né? Ou pelo menos vai notar que o próprio filho está tentando contato, certo?
Uma, duas, três. Chamada recusada.
Sinto uma raiva acumulada subir do meu pescoço para meu rosto. 
Ameaço jogar meu celular no chão mas respiro fundo. 
-Não...-digo pra mim mesmo-Eles não vão me controlar agora.
Olho para meu celular e abro o gravador.
-Ok...-coloco o celular no colchão e me levanto-Blue uma vez me disse que gravar áudios aleatórios ajuda pra melhorar o humor, então... oi pai.-engulo seco, e penso várias vezes enquanto falo o motivo de eu estar fazendo isso-Você nunca foi de falar muito, nem comigo nem com a mamãe...-flashes vem na minha cabeça-Me lembro de quando você me ajudou no dever de casa uma vez... Matemática básica, mas eu sempre odiei matemática porque eu não era bom.-minhas mãos se juntam-Você se estressou comigo, então saiu pra andar pelo quarteirão. Quando você voltou e viu meu pouco avanço na tarefa, você me bateu.-uma das minhas mãos vai automaticamente pro meu rosto-Essa foi a primeira vez, de muitas... A primeira pra mim.
Eu pausei o gravador e me encostei na parede.
Eu não consigo. Eu não consigo. Eu não consigo. Eu não consigo. Eu não consigo. Eu não consigo. Eu não consigo. Eu não consigo. Eu não consigo. Eu não consigo. Eu não consigo. 
Respiro fundo e tento evitar a ânsia virar o vômito. Minha respiração está ofegante, minha cabeça em outro mundo, e minhas pernas prontas pra correr, por mais que também estejam trêmulas e fracas.
Kin se aproxima de mim e eu me agacho devagar para ver ela. 
-Oi...
Ela pula no meu colo, e naquele momento ela é meu único objetivo. Fazer carinho naquelas orelhas peludas e finas, é meu único objetivo. Assim como ouvir ela ronronar.
Demora uns minutos, mas eu me levanto e volto a gravar.
-Foi a primeira vez que eu senti o peso de uma mão vindo bem forte no meu rosto. Mas pra mamãe, isso não era novidade pelo visto.-Kin acaba cochilando no meu colo, mas ainda faço carinho nela-A primeira vez que eu vi, foi quando vocês voltavam para casa de uma reunião de negócios.-suspiro-Você estava irritado porque ela conseguiu uma promoção, que segundo você era pra ser sua. Vocês começaram a brigar na cozinha e... E meu Deus, eu queria estar dormindo naquele dia, mas vocês esqueceram que tinham um filho e que o deixaram sozinho e sem babá!-começo a rir e sinto as lágrimas no meu rosto-E vocês começaram a quebrar os pratos, que maravilha! E gritar, e gritar e gritar...-olho pros meus pés-Eu só tinha nove anos, porra... Mas com nove anos eu tive que ver você estraçalhar a cara dela. Você socava, e socava, e socava, e eu estava na porta da cozinha... Encarando vocês e eu não me mexia.-engulo seco e me permito chorar.
Aquele dia foi o pior da minha existência. Eu tinha acordado com os pratos, não sei o que eu estava pensando mas eu desci pra cozinha ver o que estava acontecendo, mas no fim das contas eu fiquei impotente. E eu odeio ficar impotente. Mas eu paralisei. O que eu me lembro com clareza, além de cada detalhe daquela cozinha e da roupa deles, eu me lembro da minha mãe. O rosto roxo, a boca sangrando, os cabelos bagunçados e aquele corte na testa. Até hoje ela tem esse corte, e sempre que eu o vejo, eu me lembro daquela noite. Eu odeio aquela noite, então eu adoro que a minha mãe trabalhe sempre, assim não tenho que ver aquilo de novo e de novo.
-Eu não me mexia... Desculpa mãe, eu não queria, eu nunca deixaria ninguém fazer isso com você...-meus soluços ecoavam pelo quarto-Eu não sabia quando foi a primeira vez que você fez isso com ela, mas ai descobri que eu não sou exatamente o seu primeiro filho.
Olho pro lado e tento fazer minha respiração normalizar.
-Mamãe teve duas crianças antes de mim, ou pelo menos tentou.-olho para Kin e depois para meu celular-A primeira, uma menina, ela ia se chamar Molly certo? Mamãe teve um aborto espontâneo. Segundo ela, você foi o marido perfeito naquele dia, mas depois de um mês ou dois, você começou a se distanciar. Era somente ela, sua culpa, e o tumulo de Molly no quintal...-aperto as cobertas-Sabe o quanto ela mentiu pra você nesses dois anos de luto? Acho que peguei isso dela... contei muitas mentiras pra sobreviver, mas ela contou para não chorar na sua frente. Mamãe odeia chorar.-respiro fundo e solto devagar- A segunda criança, foi um menino, ele sim foi seu primogênito. Kin, um nome fofo até, acho que teria amado conhecer meu irmão.-sorrio de leve e olho para minha gata-Mas ele foi atropelado um dia. Vocês tinham levado ele no parquinho, mas por um segundo que não prestaram atenção... Bang.-bato minha mão na minha outra mão-O carro pegou ele.
Não, eu não quis dar o nome do meu irmão pra minha gata propositalmente, só achei que foi uma anagrama bacana pro meu nome. I-N-K para K-I-N, só passei o K pra frente. Mas quando percebi, era tarde pra mudar. Minha mãe tem fotos do Kin guardadas. Ele não passou dos três anos de idade. Ele tinha cabelos naquele tom de "Strawberry blonde", tinha sardas e uma marca de nascença no rosto, parecia uma mancha de tinta. Ele parecia uma criança animada e extrovertida, acima de tudo, ele parecia feliz.
-O enterro foi privado e depressivo não é pai? Ordens suas. Já que não queria passar essa vergonha de perder o primogênito.-acaricio Kin-Sabia que a mamãe me conto tudo? Quando você bateu nela por ter deixado o acidente acontecer, as várias vezes que você estuprou ela pra conseguir um filho, quando você batia nela por literalmente qualquer merda que era sua culpa...-Kin se espreguiça no meu colo e espero ela mudar de posição-Até que eu ceguei, e naquela mesma noite que eu fiquei impotente ela gritou com você, essa foi a primeira vez. Ela disse "Chega! Eu vou embora amanhã e estou levando Ink comigo!". Naquela noite, ela trancou a porta do meu quarto e dormiu comigo, e no dia seguinte, fomos para a casa da vovó.-fungo e deixo as lágrimas caírem-Sempre falo que você só me deu a vida, mas eu realmente sou filho dos meus pais... Eu tenho a porra dos seus olhos, mas mamãe disse uma vez que quando Kin chorava era o mesmo olhar triste. Sei mentir tão bem quanto a mãe, e tenho todos os semblantes de ambas as famílias, mas eu odeio isso!-bato as mãos no colchão e Kin se assusta- Cacete, todos os traumas que vocês me deram, todos os natais, os feriados de páscoa, eles sempre vão me machucar tanto quanto um tapa, e acho que não tenho que comentar do cachorro certo?-olho para Kin que sai do meu colo para me observar-É só tão... tão frustrante! Eu tento me esconder dessa linhagem de merda que eu tenho, mas não dá... Não dá!-me levanto e começo a mexer no meu cabelo-Eu olho pros meus colegas, quantos deles não tem pais normais e uma família normal que dá amor e carinho pra eles, e eu me pergunto por que caralhos eu ganhei isso?!Como você pode machucar uma criança, pai? Não posso esquecer, não posso te perdoar!-cerro os dentes-Porque agora estou com medo de que todos que amo me deixem
Meu quarto parece menor e tudo me dá raiva, eu queria quebrar tudo e qualquer coisa que aparecesse na minha frente, mas eu não posso fazer isso. Então só ando de um lado para o outro.
-Tudo o que eu fiz para tentar desfazer! Toda a minha dor e todas as suas desculpas!-começo a bater os pés mais forte-Sabe, pai, eu era uma criança mas eu não era burro! Alguém que te ama nunca faria nem metade das merdas que você fez! Todo o meu passado, eu tentei apagá-lo, e como eu tentei! Tentei de tudo pra esquecer e só seguir o padrão certo pra não receber uma surra! Mas agora eu vejo, eu mudaria isso? Eu conseguiria de algum jeito pegar uma borracha ou um corretivo e apagar esses traumas que eu recebia no lugar de um cachorro ou de um doce, ou até mesmo no lugar de uma vida normal, eu conseguiria?-finalmente volto a me sentar na cama e pego o celular- Sabe, eu não sei, mas eu sei de uma coisa: podemos compartilhar um rosto e compartilhar um sobrenome, mas não somos a mesma pessoa. E mãe... obrigada por fazer o papel dos dois lados, por mais que você nem ninguém seja, você é quem chega mais perto de ser meu exemplo de vida, e eu te amo por isso...-aperto para concluir a gravação e suspiro.
Quando me deito na cama sinto um peso sair do meu peito, e minha consciência parece mais limpa. Eu me sinto mais leve depois de falar pras paredes. Seria melhor se eu pudesse gritar, mas não, eu não vou gastar minhas energias falando desse merda. Não mais.
Kin se aproxima e lambe minha testa. Dou uma risada fraca.
-Desculpa o escândalo, Kin.-ela ronrona e deixa próxima de mim-Amanhã eu tenho aula, deveria estar preocupado com isso, não com ele... 
Durmo pensando que logo aquele tribunal literário chega, e eu não vou perder pro Error.

O Lado Complicado de Amar Seu inimigoOnde histórias criam vida. Descubra agora