Capitulo 2

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Eu tinha uns três anos. Era a hora do jantar e estávamos todos
de olhos fechados, cabeça reclinada: papai, mamãe, minha avó e eu.
- Senhor, nosso Deus e pai, nós Te agradecemos pelo pão
que Tu colocaste em nossa mesa - sibilava minha avó com sua voz
arquejante. Naquele dia, pela primeira vez, me ocorreu a idéia de
abrir os olhos, no instante em que me lembrei da advertência de
mamãe:
- Caio, meu queridinho, não abra os olhos durante a oração,
está bem? - Lutei com tal recomendação durante segundos.
- Mantenha sua mão sobre este lar, Senhor...
Mas, como disse, eu me tornava uma entidade psicológica
autônoma. Recalcitrante, ousei desacatar aquela ordem de mamãe.
Abri os olhos. Ali estava o prato, os talheres e o copo colocados
cuidadosamente sobre a toalha de renda branca: tudo muito próximo
ao meu queixo. Pensei em levantar a cabeça, ver-lhes os semblantes
durante a execução desse rito familiar tão sagrado, mas não tive
coragem. Limitei-me a lançar um olhar de esguelha, cuidando em não
fazer o menor movimento de cabeça que denunciasse minha
profanação. Lá estavam: à direita, minha mãe. Parecia cochilar, tinha
a fronte apoiada sobre as pontas dos dedos e os lábios
movimentavam-se em silêncio; era jovem, bonita, mas sua expressão
a envelhecia um pouco, pareceu-me tão séria, tão austera. A
esquerda, estava meu pai. A cabeça ligeiramente inclinada dava uma
sensação de cansaço, mas a jovialidade de seu rosto, pousado sobre
seus ombros largos, transmitiu-me a sensação de se tratar não de
cansaço, mas de disposição, de um homem obstinado. A minha
frente, estava minha avó, tinha as pálpebras espremidas, parecia
imprimir extraordinária força física e mental àquele gesto que eu
sempre julgara tão espontâneo. A sua direita, estava Maria, a
empregada, de pé como uma estátua, ostentando um uniforme cheio
de rendas e babados que, julguei muito engraçado. Parecia vigiar a todos sob as pálpebras cerradas. De repente, meu pai levantou a
cabeça e eu, assustado, fechei os olhos. Depois, abri uma pequena
fresta da pálpebra esquerda e espiei o rosto de meu pai. Ele sorria
para mim, um riso indulgente e matreiro. Esta é a primeira e uma das
mais vivas imagens que tenho de meu pai: sorrindo-me, em silêncio...
Abri os olhos e soltei os lábios, pronto para uma sonora gargalhada.
Ele, porém, me solicitou silêncio com um gesto característico; a testa
enrugada pela sobrancelha arqueada como que a me comunicar
cautela. Contive-me. Foi, então, que pude repará-lo melhor: era um
homem bonito, testa grave, olhos castanhos e feições dignas.
Pareceu-me mais jovem que mamãe. Ele deu uma piscadela de
cumplicidade e fez sinal para que eu fechasse os olhos. Eu o atendi e,
segundos, depois reabri a fim de verificar se ele havia feito o mesmo.
Sim, lá estava ele, de olhos fechados, cabeça pendida para frente,
sério. Tratei de imitá-lo. Entendi, naquele mesmo momento, que
papai tinha o hábito de abrir os olhos durante as orações à mesa, e
que, a partir daí, tínhamos algo em comum.
- ... Hoje e para todo o sempre. Amém. - encerrou vovó.
Minha mãe e Maria responderam amém, em uníssono, como
se fosse o eco da voz de minha avó. Meu pai nada disse. Na incerteza
de que alguém, além de papai, tivesse percebido minha pequena
profanação, tomei o cuidado de manter meus olhos fechados.
- Caio, meu querido - era minha mãe - já pode abrir os
olhos.
Não. Ela não tinha visto. Tão logo descerrei as pálpebras, a
primeira coisa que vi foram os olhos de reprovação de minha avó.
- Este menino cada dia fica mais parecido com o pai! -
exclamou ela pegando os talheres.
- Mamãe! - protestou minha mãe.
- Eu os vi, Rute. Os dois de olhos abertos durante a
oração... Esse... aí ao invés de dar bom exemplo, parece que deseja
fazer do menino um ateu, como ele!
Nesta frase de vovó constatei que ela não sentia a mínima
estima por aquele homem que eu começava a admirar.
- Já lhe disse várias vezes, dona Matilde, não sou ateu, sou
dcísta! - retrucou meu pai, tranqüilo, enquanto se servia da salada
de alface. Eu fiquei a olhá-lo e ele me dirigiu o seu olhar risonho e
deitou nova piscadela.
- O que dá no mesmo! Essa é boa... - bufou vovó.
Você não está com fome, meu bambino? -indagou papai.
Acenei que sim, com um movimento de cabeça.
- Maria, serve o menino! - disse minha mãe, num tom de
advertência.
- Mexa-se, menina! Fica aí de pé feito barata sonsa! -
ralhou minha avó.
- Desculpe, dona Rute. Sim senhora, dona Mathiide.
- Por favor, Maria, serve ao Caio - disse meu pai, com voz
suave e um olhar de censura às outras duas mulheres, enquanto a
coitada da moça, arfando sobre minha cabeça, se agitava com os
talheres na mão. Peguei o garfo e comecei a comer. Maria se colocou
ao meu lado, pronta para cumprir novas ordens. Levantei meu olhar
para aquele uniforme preto e vi seu rosto, parecia uma linda flor
negra orlada por pétalas brancas de renda.
- Você não está com fome, Maria? - perguntei-lhe
Ela contraiu os grossos lábios e balançou a cabeça, com certo
nervosismo.
- Depois ela come, Caio querido - sussurrou mamãe.
- E se ela estiver com fome agora? - insisti, ingênuo.
- Ela disse que não está, menino! Aprenda uma coisa:
empregados não comem na mesma mesa que o patrão... - explicou
minha avó. - Comem depois, na cozinha.
- Não preste atenção a isso, meu filho - disse-me papai,
num tom debochado. - Cristo jamais ensinou isso!
- Mas, o apóstolo Paulo ensinou, ora essa! Está escrito:
"Vós, servos, obedecei a vossos senhores segundo a carne, com
temor e tremor".
- Mas, eu não estou vendo nenhuma escrava. Você está,
Caio?
Afirmei que não com dois lentos movimentos com a cabeça.
- Acontece que eu vejo uma empregada. Uma empregada
sustentada com o salário que eu pago!
- Não preste atenção a isso, também... Não vai lhe fazer
bem, Caio - advertiu meu pai ainda de bom humor.
- Comunista! Mundano! - protestou vovó consigo mesma.
- Come, Caio querido, come! - disse minha mãe
encerrando aquela calorosa troca de farpas. Depois eu olhei para
minha avó. Ela me olhava com seus olhos fundos, um agressivo olhar
de rejeição. Senti-me tomado por uma súbita inquietação, constatei
que o ódio que vovó devotava ao meu pai, sem que eu ainda soubesse
o porquê, estendia-se também a mim.
Terminei o meu jantar, afastei o prato e fiquei a pensar sobre aquelas pessoas: a minha família. Os pezinhos balançavam suspensos
do chão e a cada movimento dava uma pancadinha seca na parte
interna da perna dianteira da cadeira, como que a marcar o ritmo do
meu pensamento; braços sobre a mesa. Papai mastigava com calma,
tinha uma expressão absorta de quem está mergulhado em
pensamentos longínquos. Mamãe parecia comer sem fome, de vez
em quando ela lançava um discreto olhar para papai. Minha avó
comia, parcimoniosamente: o rosto enrugado e carrancudo lhe
emprestava naturalmente um ar de autoridade.
- Terminou o jantar, Caio? - indagou mamãe, com uma
voz neutra.
Confirmei com a cabeça.
- Então, tire os cotovelos da mesa e pare de bater com os
pés na cadeira - disparou vovó. Acatei suas ordens imediatamente.
Mamãe sorriu aprovadora.
- Isso, Caio querido! Você é um menino muito educado...
Papai levantou a cabeça, olhou para mamãe, depois para
vovó e, por último para mim. Não pude entender o significado desses
olhares. Depois, baixou a cabeça, talvez, retomando aos seus
pensamentos distantes.
- Maria! - exclamou minha avó, sem tirar os olhos do
prato.
- Sim senhora, dona Matilde! - respondeu a moça, atrás de
mim - Leve esse menino para fazer a higiene e depois ao quarto.
- Sim senhora... Venha, Caio! - pegou-me pelo braço.
- Tudo para me aborrecer, tudo para me atingir, não é
mesmo, dona Matilde?! - exclamou papai.
- Thales. - advertiu minha mãe num sussurro conciliador.
- Mas, é isso o que ela deseja, Rute!
- Não quero atingir ninguém. Apenas desejo fazer do
menino um homem de bem - retrucou vovó, limpando a boca com
um guardanapo. Papai levantou-se, encolerizado, jogou o guardanapo
na mesa e se retirou.
- Vá, Maria, leve o menino! Está esperando o quê?
- Vamos, Caio...
Ao sair, ainda pude ouvir a voz de minha avó falando para
minha mãe:
Isso é o que você arranjou por marido, Rute: um homem
sem eira nem beira. Com tantos moços ricos e tementes a Deus, você
foi se casar logo com um ateu!
Vinte minutos depois, eu estava enfiado no pijama, só em
meu quarto. Era um dormitório muito bem mobiliado com amplas
janelas que davam para o jardim, um assoalho lustrado, um enorme
tapete, mobília pesada, cama confortável. Mas não havia vida! O
quarto parecia vazio; eu parecia vazio, o mundo parecia vazio!
Sentei-me à beira da cama e fui tomado por uma tristeza infinita. A
impressão que tinha era a de um condenado. Sentia-me trancafiado.
Mas, esta impressão não vinha por certo das paredes do quarto. Não.
Mesmo quando estava no quintal, na cozinha, em qualquer lugar da
casa, o meu ânimo não se alterava. A prisão era eu mesmo, meu
corpo, minha consciência, minha vida. A prisão era aquilo que
acabara de descobrir em mim: minha individualidade, minha
existência, meu ser. Eu era um tedioso fardo para meus pais, para
minha avó e para mim mesmo. A porta se abriu e meu pai entrou.
Sorria, com ternura.
Sentou-se ao meu lado e, num brusco golpe, me colocou em
seu colo.
- Que olhos tristes são esses? - indagou apertando-me
contra o peito. Fiquei um instante em silêncio, depois respondi:
- Vovó não gosta de mim...
Papai sorriu.
- Não, meu bambino, não diga isso de sua avó. Não é
verdade. Sua avó não gosta é de mim; quanto a você, ela o adora.
- E por que ela não gosta de você?
- Por quê? - fez uma expressão de quem seleciona as
palavras para dizer - Porque seu pai não é exatamente o tipo de
marido que ela desejava para sua mãe... Mas, um dia, ela se acostuma
com meu jeito de ser, com as minhas idéias... ou, quem sabe, eu não
acabo me acostumando com as dela, hein?
Resmunguei, concordando, e me lembrei das palavras ditas
por ele, à mesa.
- Você disse que é deísta. O que é isso, papai, é o seu
trabalho?
- Deísta... Você guardou esta palavra?
Gesticulei que sim.
- Não! Não é o meu trabalho. Deísmo é um modo de
interpretar o sentido cósmico da vida. Uma maneira de entender e se
relacionar com Deus - disse, arqueando as sobrancelhas - Mas
estas questões são coisas complicadas demais para você. E só as
compreenderá quando for mais crescido.
- Eu tenho medo de Deus! - confessei-lhe.
- Mas não há motivos para se ter medo de Deus.
- Vovó sempre diz que ele castiga as pessoas e que
construiu um lugar cheio de fogo para queimar meninos teimosos. Às
vezes eu teimo; então fico com medo...
Papai sorriu.
- Não precisa ter medo, Caio. Esse lugar cheio de fogo de
que sua avó fala é para as pessoas ruins, pessoas egoístas que não
pensam nos outros, não para você que é uma criança educada,
adorável. Mas não vá teimar com sua avó, nem dizer que lhe falei
isso, estamos combinados?
- Combinados! - respondi sorrindo.
- Agora, acho que é hora de dormir.
Ajeitou as cobertas sobre mim. Beijou-me na testa e se foi.
Foi muito depois que pude compreender com clareza a
conflituosa coexistência daquelas personalidades, que compunham
minha família. Ali, debaixo de um único teto, o dinheiro, a fé e o
ideal tomaram forma humana e se chocaram diante de um único
espectador: eu.
O início da fé e do dinheiro se deu com meu avô materno,
que só conheci por fotografias em preto e branco, amarelecidas pelo
tempo. Emigrara de Belém do Pará para São Paulo, em 1925; consta
que seu propósito era expandir a fé protestante. Apesar do inegável
sucesso desse empreendimento religioso, parece que ganhou mais
dinheiro que almas. Começou sua fortuna vendendo tecido às irmãs
de fé, depois montou uma loja no centro velho da cidade e, em 1932,
iniciou a produção fabril em um velho galpão na Mooca: a Indústria
Têxtil Canaã. Morreu em dezembro de 1960, pouco antes do meu
nascimento, legando à família uma grande indústria têxtil e um
considerável patrimônio imobiliário. Com a morte de meu avô, vovó
tomou a dianteira dos negócios, revelando-se uma mulher prática,
inflexível, uma obstinada matriarca. Mamãe era filha dessas
personalidades e dessas circunstâncias psicossociais.
Papai era filho de imigrantes italianos. Meu avô paterno era
"um operário engajado na organização política do proletariado", para
usar uma expressão muito querida de meu pai. Thales, o filho,
haveria de seguir os passos de Thirso, o pai: a contestação do sistema
político social. Formou-se na USP. Tomou-se um jornalista dedicado
A causa popular, ardoroso defensor dos direitos sociais da classe
trabalhadora. Um intelectual engajado no seu tempo. Suas matérias denunciavam de forma gritante a exclusão social da classe
trabalhadora, de modo que ganhou notoriedade como jornalista.
Uma breve notoriedade, visto que desapareceu em 1969. Sua voz foi
silenciada pela ditadura militar. Se houvesse subsistido ao regime,
com certeza, nos teria deixado alguma obra de importância histórico-
social. O mais interessante é que até à idade de vinte anos, eu
desconhecia papai por completo, para mim ele não passava de uma
sombra do passado. Desconhecia sua personalidade, sua história e
quase chegara a duvidar de sua existência real. Papai e mamãe se
conheceram em 1952, quando ele ainda era universitário e trabalhava
na Indústria Canaã. Desse primeiro encontro, só ficou o flerte e o
desejo reprimido. Cada qual habitava um mundo ideologicamente
oposto. Mas, como a ordem que rege o Destino é tão mcognoscível
quanto a que criou e rege o Universo, suas vidas haveriam de se
cruzar um dia. Reencontraram-se sete anos mais tarde. Nesse
segundo encontro meu pai venceu os rígidos princípios morais de
minha mãe: o jornalista engajado engravidara a filha do ex-patrão.
Houve veementes protestos de meus avós matemos; mas, como a fé
lhes impedia de optar por um aborto, a solução foi o casamento.
Minha avó devotou àquele homem um duplo desprezo: primeiro,
porque ousara desvirtuar sua moça, chegando ao cúmulo de
engravidá-la; segundo, porque para sua personalidade conservadora,
era intolerável viver debaixo do mesmo teto com um subversivo, um
miserável comunista que, segundo ela, alimentava a louca idéia de,
um dia, desapropriá-la do patrimônio construído com o suor, o
sangue e a vida de seu esposo, para entregá-lo aos desocupados e
vagabundos. Tampouco admitia que a única filha deixasse a casa
para viver a própria vida.
É interessante como vovó, a despeito de sua religião, amava
avidamente os bens materiais. Quanto a mim, jamais senti nada que
me fosse tão alheio como o patrimônio que herdei de meus avós. A
riqueza para mim, tal como as lembranças de minha infância, não me
pareciam algo que me pertencessem intrinsecamente, isto é, algo que
eu sentisse como parte de minha alma. Nunca fui o verdadeiro
proprietário dos bens que herdei, porque nunca os possuí em espírito.
Não sei ao certo o porquê desse desapego aos bens materiais, mas
creio que foi uma espécie de reverência velada à memória de meu
pai. Ele sempre foi marginalizado por minha avó, e ela, por sua vez,
sempre foi o símbolo vivo do patrimônio familiar. Papai nada possuía
nesta casa, exceto a si mesmo, a mim e o amor de minha mãe. E isso ó todii a homenagem que posso prestar à sua memória e à sua causa.
I)e modo que quando cruzo os corredores desta casa, quando entro
em suas salas, eu o faço com a consciência de um invasor, um
usurpador que encontrou as portas abertas e tomou posse de tudo.
Sou um impostor, um bastardo. Você ri, mas é assim que me sinto. E,
um dia, pretendo devolver tudo isso aos seus respectivos donos.
Existe uma frase que levo sempre comigo. É de William Billy
Durant, o fundador da General Motors, um garoto que começou a
vida engraxando sapatos, fundou a maior empresa do mundo e depois
morreu despojado de toda a sua fortuna, lavando pratos num
restaurante de beira de estrada. Escreveu ele: "0 dinheiro não é
nada. E algo que se empresta aos homens, porque o homem, sem
nada chega e sem nada, parte''. Este é o sentimento que tenho em
relação a esse patrimônio que, apesar de não o ter construído, me
pertence.
Os anos seguintes a 1964 foram muito conturbados. A
ditadura militar, que tomara o poder político, endurecia a cada dia a
opressão contra os contestadores do regime. Apesar de minha avó
sempre xingar meu pai de comunista, descobri posteriormente que ele
não era comunista, pelo menos jamais fora filiado ao partido. De
qualquer modo, meu pai também se opunha à ditadura, que nascera
do golpe de 1964, ele se opunha e não se calava. De 64 a 69 eu podia
ver a tensão, a ansiedade, a angústia nos olhos de meu pai. Havia
também determinação, heroísmo e ideal em seus olhos. Neste período
papai praticamente deixou de morar em casa. Quando muito, ficava
um ou dois meses, depois desaparecia por mais um tempo. Vovó me
explicou as ausências de papai com as seguintes palavras: "Seu pai
está se escondendo da polícia porque defende os malditos comunistas
ateus que querem acabar com o país, que querem tomar nossa casa e
transformá-la num grande cortiço, numa casa coletiva para
desocupados".
Numa manhã de setembro de 1969, papai reapareceu, depois
de uma ausência de mais de um mês. Chegara de madrugada. Quando
a luz da manhã começou a dissipar as trevas da noite, fui acordado
por seu abraço caloroso e festivo. Estava sujo, cabeludo, cheirando a
suor, muito agitado. Abraçou-me e me beijou com seu rosto barbudo
a pinicar o meu; mas, era um beijo muito especial, um beijo como
jamais havia me dado. Papai não pretendia ficar muito tempo, tomou
banho, fez a barba e colocou roupas limpas. Retirou do guarda-roupa
algumas peças e as colocou numa pequena mala, com alguns livros; os mesmos que ele sempre vivia lendo. Depois fomos até à garagem.
O dia já era claro, o sol brilhava atrás das árvores, projetando
sombras enormes sobre o gramado. Mamãe estava muito triste,
silenciosa. Papai agachou-se sobre os calcanhares e, olhando em
meus olhos, me revelou que faria uma viagem para muito longe, la
para a Europa, um lugar muito bonito, para arranjar um emprego por
lá. Mas que eu não precisava chorar, porque, assim que ele
conseguisse se instalar na Europa, eu e mamãe também iríamos para
lá. Disse-me para eu ser um bom menino e prometer que não iria
chorar. Assenti com a cabeça e ele me beijou. Depois beijou mamãe,
com afeto. Severino, o motorista, pegou a mala e a colocou no banco
de trás do Impala.
- Severino, o itinerário é aquele que combinamos, está
certo? - disse papai ao motorista.
- Sim, senhor Thales!
Papai abriu o porta-malas e se escondeu lá dentro.
- Feche, por favor, Severino.
- Perfeitamente, senhor Thales!
Antes que o motorista o fechasse, ele fez para mim o sinal de
positivo e me deu sua característica piscadela de cumplicidade.
Seguiu-se a pancada abafada do tampo do porta-malas de encontro ao
veículo. Era como a tampa de um brilhante caixão metálico. A
emoção tomou conta de mim, explodi num choro infantil. Com os
pequenos punhos cerrados e soluçando, esmurrei seguidamente o
tampo do porta malas:
- Abra! Abra! Abra!...
O motorista ligou o motor do Impala e o fez descer o declive
em direção ao portão da casa. Eu corri atrás, gritando desolado.
Quando o Impala arrancou, eu parei a alguns metros do portão. Era
uma manhã clara, cheia de luz. Voltei correndo, soluçando
angustiado. Refugiei-me nesta biblioteca, por detrás das grossas
cortinas e chorei convulsivamente até que só me restou uma dor
terrível e inexprimível. De repente, a porta se abriu e ouvi o fru-fru
do vestido de minha avó acompanhado de seus passos macios; o
barulho da poltrona cedendo ao peso do corpo dela; o fone sendo
retirado do aparelho... Estas foram, por muitos anos, as últimas
lembranças que guardei daquele dia fatídico. Foi a última vez em que
vi meu pai. Às vezes ainda sou capaz de sentir o cheiro da água de
colônia que ele passara depois de ter feito a barba, o calor do seu
abraço e rever o brilho do medo, que lampejava em seus olhos.
No outro dia, um pouco refeito, mas ainda entristecido,
perguntei ao motorista como meu pai tinha escapado da polícia. Ele
me explicou que conduzira papai a uma região distante da cidade, e
que lá ele embarcara na carga de um caminhão com destino à
Bolívia. Esta história da fuga me consolou, sobremaneira. Meu pai
estava vivo; talvez já estivesse voando para a Europa. A partir
daquele dia, ele se tornara um herói para mim, um herói que escapara
da polícia e dos homens do governo. Dava-me prazer; me trazia
alegria relembrar esta façanha de meu pai. Durante quinze dias, eu
exigi que o Severino a recontasse: queria apreender cada detalhe
daquela fuga espetacular, queria saber a cor do caminhão e o tipo de
carga que transportava, as últimas palavras de papai, sua expressão.
Mas, para meu desapontamento, o motorista não possuía muitos
detalhes. Estava preocupado demais para prestar atenção a tantos
detalhes. Certa vez ele ficou irritado com tantas perguntas. O que o
deixou nervoso foi o fato de eu ter lhe observado que, da primeira
vez, ele dissera ser verde a cor do caminhão em que papai embarcara
e, da segunda, dissera ser azul. Ele sustentou que sempre dissera ser
azul e que eu é que estava fazendo confusão. Por minha vez, aleguei
ter certeza absoluta de que ele dissera verde. Então, ele ficou
exasperado, furioso, gritou que eu o deixasse em paz, que parasse de
perturbá-lo, porque ele não tinha mais nada para contar. Por diversas
vezes me senti tentado a ouvir novamente a história da fuga; mas,
poucos dias depois, ele seria definitivamente poupado deste
aborrecimento. Vovó despediu o homem... Depois, mamãe me
contou que ele havia voltado para sua terra natal, no norte do país.
Os meses subseqüentes à partida de papai foram muito
tensos: mamãe passava os dias ansiosa, aflita, para receber notícias.
Passaram-se dias, semanas, meses, um ano, e ela não recebeu sequer
uma única carta. Vovó atormentava minha mãe, dizendo-lhe que o
maldito marido comunista, com quem ela tinha se casado, a
abandonara com o filho pequeno. Então, os anos desbotaram a
história de papai e de sua fuga, transformando-o numa espécie de
herói morto-vivo.
Mamãe desde menina professara a fé protestante de minha
avó; mas há muito que não freqüentava a igreja. Estava afastada,
creio que desde que engravidara. Antes que o desaparecimento de
papai completasse dois anos, minha avó já a havia recolocado nas
sendas do Senhor. Mamãe voltara à igreja com renovado ardor. E, de
alguma maneira, a saudade, ou talvez, a simples ausência de papai,
fez com que ela aos poucos começasse a se parecer com minha avó.
Quando papai era presente, ele não permitia que me levassem à
igreja. Afirmava que eu tinha o direito de escolher a minha religião.
Vovó argumentava que o caminho do Senhor deveria ser seguido
desde a mais tenra idade. Papai retrucava que ela desejava esmagar a
minha consciência crítica sob a severidade de seu Deus protestante.
Com a ausência prolongada de papai, minha avó começou a me levar
à igreja: primeiro, fazendo o uso de todos os métodos de aliciamento
infantil, que ia desde um simples gesto de carinho, a passeios no
Ibirapuera pela tarde de domingo; depois como uma obrigação
imposta com severidade. Não entendo como minha mãe permitia que
vovó mandasse tanto em minha vida e, muito mais ainda, na dela.
Dos meus oito aos dezessete anos de idade os cultos dominicais
tornaram-se uma enfadonha tarefa do meu rotineiro domingo. Nessa
fase de minha vida, eu sentia muito medo de Deus. Um medo que se
tomava ainda mais intenso durante os cultos. Eu contemplava aquela
multidão de fiéis ajoelhados, clamando e chorando pelo perdão do
Supremo Ser... Eu O imaginava um velho de longas barbas brancas,
olhar ameaçador e com a vacilante espada de sua autoridade,
suspensa sobre o dedicado fio de nossas vidas. Já nessa época eu era
atormentado por questões metafísicas: me perguntava sempre sobre o
porquê, o sentido de minha existência. Certa vez, vovó me explicou o
porquê da minha existência e de toda a epopéia humana: tudo não
passava de um ato gratuito da vontade de Deus e seu único
significado era glorificar ao Criador. Foi o que minha avó me
garantiu:
- Você existe para adorar a Deus, Ele criou você para que
O adorasse, O exaltasse, hoje e eternamente.
- Eternamente?
- Sim, eternamente. Quando você morrer, se você seguir
pelo caminho da salvação, sua alma vai para o Céu, onde
permanecerá para todo o sempre louvando e dando glória a Deus.
Nada poderia ser mais anticatequético que este argumento de
minha avó. A partir daquele momento, além de temer esse Deus
protestante, eu passei também a desprezá-lo. Desprezando-O, eu
desprezava, na realidade, minha avó. Temendo-O, eu temia, na
verdade, minha avó. Afinal ela não falava "Ele" com tanta
intimidade? Aliás, o Deus de minha avó se parecia demais com ela
mesma. Como o Criador do Universo poderia ser tão arrogante, tão
egoísta, tão narcisista? Quer dizer que ele havia me criado só para engrossar-lhe o coro de adoração? E se eu me recusasse a adorar esse
Ser egoísta? Vovó me explicou:
- Então você vai para o inferno, um lugar de fogo criado
por Ele para jogar aqueles que se recusarem a adorá-lo. Naquele
lugar terrível, haverá ranger de dentes e os malditos vão assar para
sempre como um leitão num braseiro.
Jamais cheguei a me converter de fato ao protestantismo. O
ritual do culto não me revelou nenhum sentido profundo, nem jamais
senti qualquer espécie de êxtase religioso. Mas, devido ao inferno
descrito por minha avó, durante dez anos de minha vida freqüentei
resignadamente o protestantismo. Apesar de conscientemente me
recusar a aceitar a forma acabada do Deus protestante, Ele deitou,
sorrateiro, seus tentáculos em minha alma. Destes dez anos de culto
forçado, romperam-se em minha personalidade alguns de seus traços
mais salientes: o excesso de escrúpulo moral e uma inexplicável
temeridade diante da vida e de sua situações, que - se não fosse a
autoestima - poderia por certo designá-la como covardia. A verdade
é que inconscientemente eu tomei para mim a mais nefasta
preciosidade de minha avó: a vida não estava neste mundo natural, no
presente, mas no sobrenatural e no porvir. Contudo, quanto mais ela
anunciava o mundo porvir e imaterial, tanto mais deitava raízes neste
mundo e tanto mais se tornava ávida por lucros e por bens materiais.
Minha infância foi solitária, quase irreal. Quando a revejo,
ela me parece envolvida por uma estranha névoa de irrealidade, uma
espécie de fantasia alheia à minha verdadeira e desconhecida história,
embora não duvide de sua verdade, de sua dor e de seus grilhões.
Ainda hoje não me sinto completamente livre. Esta infância tão
alheia e tão minha foi em parte fruto de uma arte, a arte da
representação: eu a vivi numa constante representação de garoto
dócil e irrepreensível. Minha mãe me vestia sempre com roupas
claras, cândidas e vincadas pela goma, o corpo recendendo a lavanda
e o cabelo penteado e úmido do último banho, fixo por um creme que
o mantinha brilhoso e assentado. Anunciava aos quatro ventos as
virtudes de seu menino prodígio. Até à adolescência, vivi exposto
numa vitrine, isolado do contato com estranhos, como uma jóia num
museu para admiração dos conhecidos da família, parentes e deleite
de vovó e mamãe. Enclausurado entre os quatro muros da chácara e
alheio ao convívio de crianças turbulentas, cresci sem dar qualquer
valor ao esporte. Se hoje possuo um corpo robusto e saudável, devo-o ao sangue paterno. Minhas amizades eram selecionadas e
patrulhadas, em princípio por minha avó e, mais tarde, por mamãe,
que tomou gosto por este capricho de vovó. Eram crianças mimadas,
de pais protestantes. O cuidado de vovó objetivava impedir que
crianças pervertidas se aproximassem de mim para ensinar coisas
feias. Ela temia que sua pequena ovelha se desgarrasse do caminho
da salvação. As companhias que vovó e mamãe me arrumavam eram
enfadonhas, insuportáveis e semelhantes a mim. Eu as repudiava em
segredo. De objetivo eu nada dizia ou fazia para afugentá-las: apenas
me calava e não lhes dirigia palavra. Eu as vencia pela indiferença.
Sem verbalizar uma única sílaba, eu as expulsava de meu solitário
território. Mamãe desejava me enlaçar numa fé duradoura,
pavimentar o caminho da minha vida, incutindo-me a sua religião, os
seus princípios, os seus valores. E presumidamente chegou à
conclusão que a melhor maneira de me enlaçar seria deixar que uma
namoradinha protestante o fizesse. Lembro-me de uma garotinha que
me foi apresentada por minha mãe. Eu contava, creio, quinze anos
quando isso ocorreu. Não me recordo de seu nome, mas suas feições
ainda estão vivas em minha memória. Era uma menina bonita, faces
rosadas, cabelo castanho, liso e comprido à altura da cintura. Talvez
tivesse a minha idade. Seus pais estiveram algumas vezes em casa e
se demonstraram bastante coniventes quanto à aproximação dos
jovens pombinhos. Mamãe estava eufórica: à tarde mandava o
motorista buscar a menina com o Opala, para que passássemos horas
juntos. Ao final do dia, conduzia a menina à mesa para que
tomássemos chá. Dava um suspiro de felicidade e nos deixava
sozinhos, para que conversássemos como um lindo e romântico
casalzinho. Não posso afirmar que ela jamais despertou em mim
nenhuma curiosidade. No princípio eu também fiquei um tanto
eufórico com aquela jovenzinha tão habilmente arranjada por mamãe
e, por algumas vezes, cheguei a pegar sua mão, enquanto
passeávamos pelo jardim da casa. Mas era um toque assexuado,
mesmo porque eu ainda não tinha uma idéia completa do sexo;
apenas suspeitava-lhe a existência. Nos passeios pelo jardim
conversávamos sobre as mais variadas futilidades. Éramos dois
adolescentes, que viviam ainda uma infância ingênua. A tarde,
quando sentávamos, um frente ao outro, na mesa arranjada por
mamãe, eu me sentia um ator de terceira categoria a improvisar um
personagem dissonante e ridículo. Aquilo me soava artificial, um
teatro de marionetes. Além disso, a menina era tão tímida quanto eu.
Tempos depois havíamos esgotado todos os nossos fúteis assuntos e
levar adiante aquela encenação se tornou uma tarefa impossível.
Mamãe protestou. Vovó chegou a ironizar, de forma bastante velada,
a minha masculinidade:
- Rute, às vezes, eu tenho dúvida se esse seu menino
chegará um dia a declamar os "Cantares de Salomão!"
Muito tempo depois, relembrando estas palavras, entendi as
insinuações de vovó. De qualquer modo, a encenação chegou ao fim
e creio que o término tenha livrado mais a pobre moça da minha
enfadonha presença, do que a mim a companhia dela.

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Minhas Notas : Gente to com sono nao prestei atençao se copiei td direito se ter algo fora do contexto e porque pulei a parte de copiar (sem querer)

Chuva De NovembroOnde histórias criam vida. Descubra agora