Capitulo 17

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Entre 1982 e 1985 vivi os anos em que mais estive próximo à


política e, portanto, à história recente do país. Não que a política me


fascinasse, mas este período foi por demais efervescente para que até


mesmo o mais distanciado cidadão fosse atingido pelas


transformações sóciopolíticas e as discutisse, em seu cotidiano.


Em 84, fui às ruas gritar, junto com o povo. Reivindicar a


democracia plena, as "diretas já". As lembranças que trago desses


comícios e manifestações, aproximam-me mais ao meu pai, do que à


história recente do país. Eu não tinha sido educado para defender o


interesse geral. Mas, também, não tinha sido educado para agarrar-


me ao que deveriam ser os meus interesses de classe. Eu era apenas


um pequeno burguês, sem nenhuma convicção política, sem


envolvimento intelectual com a causa popular. Se eu tinha algum


envolvimento com o povo, era um envolvimento somente emocional.


Era compaixão por sua miséria e seu sofrimento. E foi por


compaixão, e não por ideologia, que saí às ruas. Nas ruas eu gritava,


cantava o Hino Nacional e "Prá não dizer que não falei das flores".


Não cantava por mim, cantava pelos outros. Sequer era eu quem


cantava: era meu pai, que cantava em mim. Aquele gesto para mim


era mais que gritar pelas eleições diretas: era gritar por um herói


anônimo. Era cantar por um herói sem corpo, por um espectro que


parecia me espreitar na multidão. Era um modo de orar por meu pai.


Em 82, quando cursava o terceiro ano de faculdade, conheci


um jovem idealista estudante de História: Silvio. Era militante do,


então recém fundado, Partido dos Trabalhadores. Era neste partido


que tinha desaguado grande parte dos intelectuais, estudantes e


militantes de esquerda que se enfileiraram contra a ditadura imposta


pelo golpe de 64. Nessa época, eu alimentava a idéia de localizar o


corpo de meu pai. Silvio me apresentou para diversas pessoas que o


teriam conhecido. Entretanto, ninguém podia me dar uma pista


segura que me levasse à localização de seu corpo. No último ano de faculdade, como se fosse uma espécie de despedida, Silvio me


prometeu que encontraria o corpo de meu pai. Na ocasião, fiquei


ansioso com esta promessa. Essa ansiedade se perdeu com os anos.


Após o término do curso de filosofia, perdemos o contato. Julguei


que o idealismo do jovem estudante tinha desvanecido e cedido lugar


à necessidade prática da vida e, com seu idealismo, também tivesse

Chuva De NovembroOnde histórias criam vida. Descubra agora