Capitulo 5

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Saltei da cama e corri à janela. Olhei para o jardim, para a
garagem, o pequeno bosque, a piscina, o muro, o portão: olhei para
tudo o que estava ao alcance dos olhos e, sobretudo, olhei para além
de tudo isso: olhei para o mundo e para a vida. E o mundo me
pareceu cheio de significado e a vida um pote de felicidade pronto
para ser experimentado. E espantoso, pensei, como me coloquei de
pé com tamanha facilidade e determinação. Há pouco tempo, antes de
tocar meus pés no chão, eu jazia melancólico e reticente em minha
cama por pelo menos quarenta minutos.
- Bom dia, Dia! - exclamei para o horizonte que se
descortinava ante meus olhos.
- Bom dia. Sol! Bom dia. Árvores. Bom dia. Mundo! Bom
dia, Caressa...
Não houve nenhuma resposta: mas eu ouvia as respostas em
meu coração. Lembrei-me do saxofone. Eu o havia esquecido no
porta-malas do carro. O sax fez com que, subitamente, também me
recordasse do disco. Sim, o disco do Johnny Rivers! Mamãe não
poderia ver o disco! Desci correndo as escadas, cruzei a sala e
disparei para a garagem. O carro estava fechado, o disco no seu
banco traseiro. O relógio cuco indicava 6h40. Antônio só estaria em
casa dentro de uma hora. Isso gerou em mim uma terrível apreensão.
"E se mamãe visse o disco?" Descobriria que a canção, que eu tocava
com tanto empenho e dedicação, nada tinha de evangélica. Então
toda a farsa estaria desmascarada! É espantoso como na adolescência
damos grande dimensão para coisas sem importância.
Transformamos banalidades em problemas insolúveis. Na verdade,
mamãe nunca se dirigia ao carro, senão quando fosse a determinado
lugar especificamente e, mesmo assim, só quando o motorista já se
encontrava em seu posto.
Quando Antônio chegou, fui encontrá-lo no portão. Ele me
entregou a chave e eu corri para a garagem. Retirei meu saxofone e o
disco. Atravessei a sala, cuidadosamente, e me recolhi ao quarto.
Tranquei a porta, arrastei um pequeno divã para junto da vitrola e
coloquei o disco no prato:
- Não é esta! Nem esta...
Suspirei.
- Esta! E esta! - disse para mim mesmo.
Eu a ouvi baixinho, muitas vezes. À tarde, eu já podia
reproduzi-la no sax de forma inteligível. Talvez a emoção e memória
forjem um pouco as lembranças. Pelo que me recordo, porém, em
algumas semanas eu já era capaz de executar com perfeição "A
Whiter Sfiade o f Pale". O dia transcorreu da forma mais natural
possível. Foi após o almoço que ocorreu um acontecimento digno de
ser relatado. Eu tocava, sentado no gramado, junto ao declive
pavimentado de ardósia, que liga a garagem ao portão. Ouvi uma
ruidosa saraivada de palmas e olhei para o portão: um homem, de
aspecto repreensível, acenava para mim. Fui até lá.
- Boa-tarde, jovem! - cumprimentou.
- Boa tarde! - respondi-lhe.
Era um tipo alto, barbudo, desleixado. Os cabelos
emplastrados para trás expunham uma testa grande e angulosa.
Trajava calça de tergal, boca-de-sino, desbotada, e uma camisa
colorida, de mangas compridas. Atrás dele, havia um Corcel
estacionado.
- Sou pintor! - disse ele - Faço quadros, retratos,
paisagens... Pintura a óleo, sobre tela. Sua mãe não se interessa por
um belo quadro pintado por um verdadeiro artista?
- Creio que não, senhor! - respondi-lhe.
Ele insistiu:
- Mas, meu bom rapaz, você nem viu a beleza de minha arte
- disse, abrindo a tampa traseira de seu Corcel. Retornou ao portão
com vários quadros sem molduras.
- Veja, que beleza! - exibiu-me um retrato de uma senhora
sisuda.
- Quem sabe você até conheça esta mulher? Este semblante,
meu caro, faz parte da elite paulistana!
Colocou o quatro no chão e me mostrou outra tela: um
cãozinho poodle sobre um tapete.
- A madame me pediu um retrato da sua queridinha Sissi!
disse, desdenhoso, com voz de falsete. -Francamente! Não gosto
de retratar animais, nem natureza morta. Mas, até mesmo um artista
genial, como eu, às vezes, tem que de se dobrar aos desejos de seus
clientes... Money! meu caro jovem. Esta porcaria põe o mundo a
funcionar! - acrescentou num tom didático.
- Agora veja este quadro - disse èle, passando para outra
tela. - Um magnata tingido pelos traços e cores de Van Gogh. O
resultado não é fascinante?
- Sim. Muito interessante. - respondi-lhe, sem entusiasmo.
- Ah, sim... Tenho um que você vai adorar. Assim que o vir
vai exigir que sua mãe peça para que eu faça um retrato de seu
adorável rosto juvenil - me disse, juntando os quadros que estavam
encostados ao portão. Retornou ao porta-malas do carro, trouxe um
único quadro e o estendeu para mim:
- Veja. Diga-me, se não adoraria ter pendurado na parede
de seu quarto um retrato seu, pintado com cores assim tão vivas,
hein?
A minha expressão se transformou, passando do desinteresse
para a exultação. O pintor percebeu o meu súbito interesse.
- Sabia que você adoraria, hein! Vamos, chame o seu pai ou
sua mãe para começarmos a pintar agora mesmo.
Eu continuava a olhar para o quadro. Era uma pintura viva,
com cores sutis, harmoniosas. Retratava uma garota. Mas não era
aquele rosto estampado na tela a causa da minha exultação. Era o
rosto de Caressa que eu via ali, no lugar daquele rosto anônimo.
- Então? Vai chamar a mamãe?
- Não! - respondi-lhe.
- Pensei que tivesse gostado do meu trabalho... - retrucou
ele, desanimado.
- Gostei. Sim, gostei muito! - olhei para trás; não havia
ninguém. - Quanto custa um quadro como este? Ou melhor, um
quadro pouco maior que este?
- Que preocupação mais infundada, meu jovem! Não custa
menos do que vale e nem um centavo a mais do que seus pais podem
pagar.
- Sim. Mas... eu é que vou pagar pelo quadro... Minha mãe
não pode nem mesmo saber que o estou encomendando.
- Uma surpresa, então?
- E... Digamos que sim.
- Quanto você dá por uma "obra-prima" pintada por João
Diniz? - indagou-me com ar de importância, como se pedisse uma
oferta num leilão. Aquela altura eu temia que aparecesse alguém e
estragasse meus planos.
- Façamos o seguinte - disse-lhe, por fim -Encontre-me
às dezoito e trinta... - "mas onde?", perguntei para mim mesmo.
Não me vinha à cabeça nenhum lugar público onde pudéssemos nos
ver - Onde você pode me encontrar? - indaguei-lhe.
- Eu faço ponto em frente ao estádio.
- Do São Paulo?
- Sim.
- Ótimo! As dezoito e trinta nos veremos lá! Quero
encomendar um quadro.
- E isso aí, meu jovem... Você não vai se arrepender. No
futuro uma tela de J. Diniz será negociada por milhares de dólares
nas maiores casas de leilões do mundo.
Não sei se ele dizia aquilo debochando de si mesmo ou por
pura pretensão; mas sorri ante suas palavras. Ele se dirigiu ao Corcel.
- Dezoito e trinta - repetiu antes de entrar no carro. Em
seguida ligou o barulhento motor e desapareceu, rua abaixo.
Não toquei mais o sax. A expectativa, gerada pela idéia de
ver Caressa pintada em um quadro, era prazerosa demais para que eu
ainda necessitasse da música. Eu podia ver o encantador semblante
dela a sorrir para mim, de uma tela imaginária. Essa prazerosa
esperança, contudo, não durou muito. Logo uma dúvida aterradora
me atravessou o espírito como uma espada gelada: como faria para
pagar o trabalho do pintor? Essa angustiante pergunta me
acompanhou por toda aquela tarde. Em torno de quinze horas
finalmente me entreguei a uma solução que, apesar de ter me
ocorrido antes, reservava-a como a última alternativa. Tomei banho e
me vesti cuidadosamente. Mamãe exigiu que eu levasse um pulôver,
afirmando que aquela noite não seria tão suave quanto a anterior.
Acatei-lhe o pedido, mas não abri mão de uma bela jaqueta esportiva.
Protelei de propósito a saída para poder encontrar o pintor no horário
que havíamos combinado. Ao me dirigir à garagem, passei pela
cozinha e apanhei uma caixa de chá "Earl Gray", escondendo-a sob
a camisa. Por fim, quando faltava pouco para as dezoito horas, fui
para o carro. Tão logo me sentei no banco, enfiei a mão no fundo do
bolso da calça; sorri ao sentir nos dedos aqueles pequenos e
supérfluos objetos, que - em breve - se tornariam um maravilhoso
retrato de Caressa. Antônio, atendendo ao meu pedido, desviou o
itinerário para frente do estádio do São Paulo. Na primeira passagem de inspeção que fizemos ao local, já avistei o pintor. Estava no
acostamento, próximo aos guichês. O velho Corcel fazia a vez de
cavalete e estava coberto pelos mesmos quadros, que ele havia me
mostrado. Pedi ao Antônio que parasse vinte metros antes. Não
queria que ele escutasse a negociação que faria com o pintor. Desci
do carro e caminhei até o pintor. Ele conversava com um cliente.
Aproximando-me um pouco mais, entendi que ele tentava lhe vender
um retrato. Fiquei atrás aguardando o fim da conversa; depois,
polidamente, o transeunte recusou-se a adquirir um retrato pintado
por J. Diniz. Naquele instante comecei a duvidar se ele seria de fato
um bom pintor. Ele era extravagante demais para ser levado a sério.
"Mas, de todo modo", pensei, "a extravagância deve fazer parte da
arte".
- João! - chamei-o
Ele voltou-se em minha direção.
- Oh, meu mais jovem cliente! - disse abraçando-me. -
Então não era um blefe? - indagou-me.
- Claro que não!
Ele cofiou a barba ensebada.
- Você quer um retrato, não é mesmo?
- Exatamente, João - respondi-lhe com a mão no bolso,
apertando entre os dedos os objetos com os quais pretendia
remunerar-lhe a obra.
- E o jovem já chegou à conclusão de quanto vale uma
obra-prima assinada pelo talento de J. Diniz?
- Creio que sim... - tirei a mão do bolso e a estendi diante
de seus olhos. - Acho que isso paga a obra-prima de João Diniz e
ainda me dá o direito de uma bela moldura!
- Ora, ora! - resmungou ele se inclinando sobre os
pequenos objetos em minha mão - O que temos aqui? - indagou,
cutucando as abotoaduras com o indicador, como se fossem dois
insetos.
- Um par de abotoaduras de ouro - respondi-lhe realçando
a palavra "ouro". Ele as pegou:
- Uma pequena jóia - observou - Mamãe já sabe desse
projeto?
- As abotoaduras me pertencem - retruquei um pouco
exasperado com a pergunta -Vê estes relevos? Pois bem...é um C,
envolvendo um G, são as letras iniciais de meu nome: Caio Graco.
- Caio Graco!- repetiu- Realmente... mas... sua mãe não vai concordar que você disponha de um objeto tão particular, não
é mesmo?
Estas palavras me deixaram aborrecido. Lancei a mão sobre
as abotoaduras, disposto a tirá-las da mão do pintor. Ele, porém, foi
muito mais ágil e fechou o punho.
- Negócio fechado! - respondeu, expondo seus dentes
grandes e amarelados - Garoto, vamos recolher acampamento!
Ajudei-o a guardar os quadros. Disse-lhe que nos seguisse
com seu carro até o bairro do Tatuapé. Ele assobiou, como a protestar
pela distância.
- Você está sendo bem remunerado para isso! - respondi-
lhe.
- Um valor do tamanho de minha arte, meu caro jovem!
Nem um centavo a mais... - justificou, sorrindo.
- Antônio - informei, ao entrar no carro -, aquele homem
vai nos acompanhar até o Tatuapé. Suspeito que o carro dele não
tenha o mesmo desempenho do nosso, por isso aconselho você a
dirigir devagar, a fim de que ele não nos perca de vista.
Antônio ouviu calado. Só falou depois que, mesmo com a
velocidade bastante reduzida, nos distanciamos quase quinhentos
metros do Corcel:
- Suspeito que o carro dele não tenha mais desempenho que
uma carroça puxada por burros - ironizou. Rimos com a piada sobre
o carro do pintor.
Chegamos à casa de Caressa. Desta vez, não errei de
campainha, o que me livrou de rever o rosto daquela mulher
esquisita. A mãe de Caressa veio abrir o portão
- Caio! - exclamou, sorrindo.
- Boa-noite, dona Solange!
- Caio, nem lhe digo! - prosseguiu ela, no seu jeito
tagarela. - A vizinhança inteira está num verdadeiro pandemônio.
Gente invejosa! Estão dizendo que Caressa encontrou um rapaz fino,
rico. Gente maledicente! Onde já se viu, estão dizendo que minha
filha não é para você. Observe como as pessoas te olham!
Olhei para os lados e percebi duas mulheres cochichando no
portão, do outro lado da rua.
- Essas aí são umas fofoqueiras... Gente linguaruda! O pior
são estes daqui... - indicou, com um movimento de cabeça, a casa
da irmã de Eli mar.- As vezes, tenho medo de que essa bruxa aí -
disse persignando-se - faça algum feitiço contra você ou contra Caressa. Cruz-credo! Isola, mulher! Isola!
- Caressa, está? - perguntei-lhe.
- Sim. Está tomando banho.
- Dona Solange, este é Antônio, motorista da família...
- Como está? - indagou a mulher.
Antônio sorriu, fazendo uma mesura.
O pintor já se encontrava no portão. Tinha colocado sobre
suas roupas uma espécie de guarda pó encardido e salpicado por
manchas das mais diversas cores. Sobre os cabelos encardidos
colocara uma boina de cor ocre e trazia uma tela em branco, cavalete,
tintas e outros apetrechos para pintura.
- E este é o pintor João Diniz. - apresentei-o à mãe de
Caressa. João se curvou em reverência e tomou-lhe a mão.
- A sua disposição, madame - disse, beijando com
delicadeza o dorso da mão da mulher, que sorriu divertida:
- Muito prazer! Entrem, por favor!
Descemos. Meus olhos logo se dirigiram para o pequeno
banheiro à procura de Caressa. A porta estava fechada. De um
pequeno vitrô saia uma nuvem de vapor. Na cozinha, depois de uma
xícara de chá Earl Gray, Antônio se desculpou e disse que preferia
aguardar no carro. João Diniz, na cozinha, montou a tela sobre o
cavalete e ficou aguardando aquela que seria retratada, conversando
animadamente com dona Solange. Eu fique esperando ao término do
banho de Caressa. É incrível como o tempo demora passar quando se
espera por quem se ama. Mas, confesso que, apesar de toda a
ansiedade, eu passaria minha vida inteira, olhando para aquele vitrô
iluminado, à espera dela. A porta se abriu e do banheiro saiu minha
amada. Quando ela levantou a cabeça e me viu no alto, na pequena
área, um sorriso radiante iluminou seu rosto. Saltei os dois pequenos
degraus e ela se atirou em meus braços.
- Caio, meu Romeu! - sussurrou, apertando-me a cintura.
Eu sentia o cheiro de xampu, que exalava de seus cabelos
molhados.
- Caressa, minha doce Caressa! - respondi, levantando o
seu rosto em direção ao meu e beijei-lhe os lábios volumosos. Ela
tinha uma inclinação natural para a arte da representação. Seus
gestos, sua voz e suas palavras pareciam teatralmente estudados, a
fim de provocarem os mais deliciosos efeitos românticos. Eu era um
meninão reprimido que, desabrochando para a vida, tentava
improvisar cenas ao lado daquela pequena e talentosa atriz.
- Tenho uma surpresa para você! - disse-lhe.
Ela dobrou o punho direito e tocou o peito com as pontas dos
dedos, fazendo uma encantadora expressão de surpresa.
- Para mim?
- Sim. Venha! - peguei-a pela mão e a arrastei para dentro
da casa. Quando entramos, ela deparou com a exótica figura de João
Diniz. O homem lhe fez uma mesura e tomou-lhe a mão:
- Encantado, mademoseille! - disse ele, repetindo o beijo
com que já havia cumprimentado dona Solange. Ela explodiu numa
sonora e desdenhosa gargalhada.
- Caressa! - disse-lhe advertindo-a com carinho.
- Esta é a surpresa, Caio?
- Sim... Não gostou?
Deu mais uma sonora gargalhada, depois perguntou,
debochada:
- Quem é esta coisa?
- Caressa... Ele é um artista, um pintor. Não viu a tela, ali?
- Ah, um pintor? E o que ele vai pintar?
- Vai pintar a menina mais linda do mundo...
Pretensiosamente ela repetiu o gesto do punho dobrado e
encostou a ponta dos dedos no peito.
- Eu! - exclamou.
- Como adivinhou?
- Você não disse a menina mais linda do mundo?
- Convencida!
- Então, meu bem?... - disse, enfiando-se por entre as
cortinas de pano florido, que separavam a cozinha do quarto.
- Caio, espera um pouco! - continuou de dentro do quarto.
-Vou colocar outra roupa; afinal, você não quer que sua querida
Caressa entre para a História como a "Mona Lisa de pijama", não é
mesmo?
- Claro que não, minha querida Caressa!
Momentos depois, ela indagou:
- Caio, que roupa devo pôr?
- O vestido que usava sábado, quando nos conhecemos.
- Está bem...
- E enxugue bem os cabelos! - acrescentei.
- Vou enxugá-los...
João Diniz retomou a narrativa de seus delírios de gênio da
pintura. Não prestei atenção ao que dizia, mas acredito que afirmava que depois de sua morte, sua obra teria alcance mundial e uma única
tela poderia alcançar milhares de dólares. Se não dizia exatamente
isso, dizia algo muito próximo disso. Quinze minutos depois Caressa
surgiu por detrás da cortina. Trajava o mesmo vestido com que eu a
havia conhecido. Estava belíssima. Os cabelos brilhavam, o rosto
estava corado, os lábios estavam ainda mais vermelhos, seus olhos
ainda mais sedutores. Ela estava envolta numa aura de magnetismo
tão intenso, que - por um instante - tive medo de que eu não fosse
o único a senti-lo. Ela dirigiu para mim um olhar lânguido e os lábios
se entreabriram num sorriso quase infantil:
- Como estou, Caio? - perguntou-me.
- Digna de ser retratada por Renoir .. - respondi-lhe.
- Quem é Renoir?
João Diniz interpôs com uma grosseira imitação do sotaque
francês:
- Eu, senhorita! "Jean Pierre Auguste Diniz Renoir", muito
prazer.
- Verdade, Caio?
- Vamos sabê-lo quando ele terminar o seu quadro. Venha,
Caressa. Sente-se aqui. Está bem aqui, João?
- Pode ser... Acerta um pouco o ângulo da cabeça, um
pouco mais à direita. Assim...
Sentei-me ao lado da tela de João, de frente para ela.
- Caressa, sorria para mim! - pedi-lhe.
Ela abriu um sorriso que não tinha nada de artificial, um
sorriso meigo de menina entusiasmada. Seu rosto se iluminou. O seu
riso matreiro, as linhas de suas feições, o colorido dos lábios e das
faces, os cabelos caídos sobre os ombros nus, tudo se compunha com
harmonia naquele rosto de anjo.
- Atente ao colorido do rosto e, sobretudo, a esse sorriso,
João! - exclamei. - Este é o instante que você deve perpetuar no
"Retrato de Caressa".
- Eu não perderia essas cores e esses traços por nada neste
mundo! - respondeu ele - Já os gravei no fundo de minha memória
fotográfica. E pretendo retratá-los com a mesma precisão com que os
pintores do século dezoito retrataram suas majestades.
Enquanto João trabalhava no retrato, meus olhos se
embriagavam daquela doce modelo. Eu estava apaixonado por aquela
garota. Foi então que, olhando para ela, refleti no que havia acabado
de fazer: por um retrato dela eu fora capaz de subtrair uma jóia de
família, cujo valor sequer sabia precisar. Qual era a palavra mais
apropriada para se classificar tal gesto? Roubo? Furto? Seja qual
fosse a palavra correta, naquele momento eu me sentia um larápio.
A verdade: aquele objeto, embora me pertencesse, nunca tive esta
certeza, até o momento em que, resoluto, o subtraí do porta-jóias. "E
quando mamãe descobrisse meu pequeno furto? Não. Ela não ia
descobrir. Já se passava mais de um ano, desde a última vez que me
pedira para que eu usasse aquelas abotoaduras. Com um pouco de
sorte", pensei, "talvez não me peça para usá-las nos próximos anos.
Além disso, depois posso resgatá-las do pintor".
- Caio! - era a melodiosa voz da minha amada - estou
cansada de ficar aqui sentada.
- Só mais cinco minutos, mademoseille - pediu João.
Esbocei-lhe um sorriso de impotência.
- Pronto - exclamou João, algum tempo depois.
- Enfim! - suspirou Caressa com trejeito de tédio.
- Deixe-me ver como está... - disse eu, pondo-me de pé.
Caressa deu um salto e se colocou ao meu lado.
- Isso sou eu? - indagou, fazendo com a mão direita
aquele gesto singular que surtia tanto efeito em meu espírito
apaixonado. Com que beleza ela executava esse gesto para mim!
- Não exatamente, mademoseille - justificou-se o pintor
- Trata-se apenas de um esboço. Delineei as linhas principais para
que a essência da postura não se perca. Eu também estou cansado. Se
quiser podemos continuar amanhã. Será cansativo, mas se
começarmos cedo, à tarde o retrato estará pronto.
Caressa enroscou-se em meu pescoço.
- Então amanhã cedo você recomeça, João! - respondi-lhe
- Ah, Caio... é tão cansativo ficar ali sentada sem poder
nem mesmo me coçar.
Dona Solange surgiu do quarto.
- Chega de birra, Caressa! Que menina manhosa! O rapaz
contratou um pintor para fazer um retrato para você e ainda resmunga
para ficar sentada em uma cadeira!
Ela retraiu os lábios num gesto de desprezo.
- E nem adianta fazer caretas! - voltou-se para mim -
Amanhã eu não vou trabalhar, Caio. Vou estar em casa o dia inteiro,
quero ver se ela não vai ficar sentada quietinha nesta cadeira.
- Promete ser boazinha? - perguntei-lhe.
- Você quer mesmo esse retrato? - indagou ela com desânimo.
- Muito. - respondi-lhe.
Ela deslizou a língua no lábio superior e depois mordiscou o
inferior:
- Então eu prometo - respondeu, antes de puxar meu rosto
de encontro ao seu e me dar um sonoro e rápido beijo. João Diniz
pigarreou:
- Bem, vejo que os pombinhos começam a arrulhar... -
gracejou o pintor, tomando a mão de dona Solange e beijando-a no
dorso, com teatralidade.
- Madame, até amanhã! - voltou-se para Caressa e repetiu
o gesto - Até amanhã, mademoseille. - Depois estendeu para mim
sua mão magra e suja de tinta. Apertei-a.
- Caro jovem - disse ele, - sua amada é encantadora,
uma linda flor cheia de pétalas, uma flor petulante...
Eu sorri enrubescido com o trocadilho de João Diniz. Caressa
sorria vaidosa, sem compreender que o pintor a chamara de flor
atrevida, insolente.
- Eu o acompanho até o portão - disse dona Solange com
solicitude e divertimento. Tão logo ficamos sozinhos, indaguei dela:
- Sabe o que significa uma flor petulante?
- Claro que sei! Uma flor cheia de pétalas!
Balancei a cabeça:
- Não sua boba! Significa uma flor atrevida.
Ela vez uma careta.
- Maldito pintor! - exclamou, simulando um ódio terrível
- Senhor Caio, quer dizer que sabia que aquele louco se divertia às
minhas custas e não teve a nobreza de me defender?
- Sim! Quero dizer, não!
Ela olhou para mim com uma expressão maliciosa e
divertida, segurou o colarinho de minha camisa e em arrastou para o
quarto. Eu sorria divertido com sua teatralidade. Ela me empurrou
sobre a cama da mãe e eu caí esparramado, rindo, com a cabeça para
trás. Ela colocou cada um de seus joelhos ao lado dos meus quadris:
- Pois você vai aprender uma coisa, senhor Caio!
- O que você vai fazer?
Eu ainda ria, quando ela se deitou sobre mim. Seu corpo
colou-se ao meu. Levantei a cabeça em sua direção. Seu rosto estava
enrubescido. O olhar era lânguido, os olhos brilhavam com malícia e
acanhamento.
- O que vai fazer comigo? - repeti um tanto perplexo.
- Cala a boca, Caio Graco! Agora você é prisioneiro do meu
amor!
- Oh! - sussurrei.
Ela reclinou sobre meu rosto. Meus lábios estavam
entreabertos pela respiração que se tornara ofegante. Ela deslizou
com delicadeza a língua por entre meus lábios, e me beijou. Meu
coração batia descompassado. Minhas mãos percorreram toda as suas
costas e pousaram na delgada cintura. O que eu sentia era delicioso:
sentia uma nova experiência emocional brotando dentro de mim.
Sentia o nascimento do desejo...
- C aio - sussurrou ela - eu te amo muito, muito, muito!
- Eu também te amo, Caressa. - declarei.
Entregamo-nos a um outro beijo ainda mais ardente. Meu
coração parecia ribombar como um tambor. Parecia, não, ribombava
violentamente como um tambor! Batia surdamente. Batia
ritmicamente. Batia assustadoramente. Mas não era meu coração que
batia daquele jeito! Eram tambores mesmo. Empurrei-a assustado
para o lado da cama e saltei.
- O que é isso?
- Isso o quê, Caio?
- Esse barulho?
Ela fez a sua característica carinha de desprezo:
- Não ligue para isso, não! E a macumbeira da irmã do
Elimar. As sextas-feiras, eles sempre dão uma gira no quintal.
- Uma gira? - perguntei, espantado com o ritmo das
batidas.
- E. Uma sessão de candomblé.
Ela se ajoelhou na cabeceira da cama, apoiou-se no umbral
da janela fechada e pôs-se a espiar pela fresta.
- Venha ver, Caio!
Ajoelhei-me ao lado dela e olhei pela fresta. O quintal havia
se tornado um verdadeiro terreiro de candomblé. Rapazes vestidos de
branco, alguns de tênis, outros descalços, batiam os atabaques junto
da porta do estranho cubículo, que agora se encontrava aberto.
Mulheres, de cócoras, usando toucas e vestidos brancos armados,
providenciavam as oferendas para o ritual.
- Caio, está vendo aquela magricela perto da porta?
- Sim, estou.
- É a irmã do Elimar.
Lembrava-me daquela feição débil: tinha sido ela que
primeiro me atendera ao toque da campainha na noite, anterior.
- Vê aquele que conversa com ela agora?
- Sim. O homem de bigodinho?
- Sim, ele. É o pai-de-santo. E marido dela, mas mantém
um caso amoroso com um rapaz... E moram todos juntos!
Eu estava atordoado com aquela informação.
- Ele é homossexual? - indaguei
- Homossexual?... - repetiu ela - E uma bicha descarada!
- Caressa! - protestei, puritano. Ela riu baixinho.
- Mas é verdade, Caio!
A porta da cozinha foi encostada, fazendo um ruído abafado.
- Caressa? Caio? - indagou dona Solange, em voz alta.
- Estamos aqui no quarto, mãe.
A mulher abriu a cortina.
- Caressa, já não lhe pedi para não olhar essas coisas ruins?
- Só estava mostrando para ele a irmã do Elimar.
- Mas não quero, filha! - Solange levantou as mãos para o
alto: - Todas sextas-feiras é o mesmo inferno, Caio. Está ouvindo
este batuque?... Pois bem, isso atravessa a noite, só param de
madrugada!
- O que eles fazem ali naquele quartinho esquisito?
- Macumba - respondeu, baixinho - Essa mulher tem
parte com o diabo! - Caressa riu, debochando da superstição da
mãe.
- Não ria, menina! - protestou a mulher - Caressa não
acredita nessas coisas, por isso fica rindo... Ah, se eu tivesse
condições, alugaria uma casa bem longe dessa maldita gente e
sumiria desse lugar desgraçado... - exclamou a mulher saindo para a
cozinha. Caressa renovou a risadinha debochada.
- Liga não, minha mãe é assim mesmo, uma medrosa!
- Você não tem medo mesmo? - perguntei-lhe.
- Eu não! Para mim não passam de um bando de malucos.
De repente os atabaques pararam de rufar. Caressa fez um ar
de suspense. Depois riu, agarrando-se a mim. Eu também não pude
deixar de rir com seus trejeitos de menina. Um velho despertador em
cima da cômoda indicava 20h20, quando ouvi a voz sumida de
Elimar falando com dona Solange na cozinha. Chegara do trabalho.
Depois ele entrou no quarto. Eu e Caressa estávamos sentados na
beira de sua cama conversando futilidades. Elimar me cumprimentou
e colocou uma pequena bolsa verde, tipo mochila do exército, sobre a

Chuva De NovembroOnde histórias criam vida. Descubra agora