5| Tormento

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Me sento na cama sobressalta com o pesadelo. Meu peito sobe e desce, não consigo respirar direito. Ponho as mãos por entre os cabelos, apertando os olhos ao murmurar:

ㅡ De novo, não... Dorme, dorme, dorme, dorme...ㅡ me balanço para frente e para trás como se estivesse sendo embalada por alguém imaginário.

Mas as cenas do pesadelo ainda estavam em minha mente...

"Cala a boca, Marie! Não seja tão escandalosa!", mas como uma garotinha de sete anos permaneceria quieta diante de tamanha maldade? Como ela poderia se esquecer dos apertões, dos murros e, principalmente, do olhar de raiva, marcado e fervente como brasa, de alguém que não conseguia o que queria?

Eu não sabia o porquê de toda aquela raiva, mas parecia  um pecado sem perdão. Agradecia por Alice dormir comigo, assim, Daniel não me bateria à noite ou tentaria alguma coisa. Assim eu podia acalmá-la quando ele se drogava e quebrava toda a casa enquanto nossa mãe engolia quieta os gritos de raiva e apavoro.  Como a Marie de sete anos poderia esquecer dos empurrões e puxões de cabelo, mesmo não entendendo muita coisa?

Daniel não me suportava, isso era fato, mas enquanto mamãe era viva, ele ainda não me batia como depois que ela morreu. Ele era esperto em bater sem deixar muitos hematomas por debaixo da blusa, e sem que ninguém visse, aliás, era um policial experiente... Quem iria contra ele?

ㅡ Marie, pare!ㅡ Alice me sacudia com força, com desespero na voz. ㅡ Vovó!ㅡ berrou.

Me afastei bruscamente dele, sentindo minha cabeça doer. Mais uma vez, meu peito subia e descia, descompassado com o coração disparado no peito.

ㅡ Minha nossa...ㅡ ela indicou alguns tufos de cabelo sobre o colchão. ㅡ O que foi isso?! Você estava se batendo e berrando, Marie!ㅡ colocou a mão no coração, os olhos marejados e levemente arregalados pelo susto.

Minha boca treme, e a abro para falar algo, mas nada sai.

Em questão de segundos vovó está na porta, vestindo apenas uma camisola branca, e os olhos preocupados assim que recaem sobre mim.

ㅡ Marie, querida, o que houve? ㅡ ela se aproxima,   mas não me toca. 

ㅡ Ela está tendo pesadelos de novo. ㅡ Alice responde por mim, suspirando. ㅡ Faz tempo que ela não tinha.

E era verdade, desde que mama havia me dado os brincos, eu nunca mais havia tido pesadelos. A diferença era que os de antes eram com o acidente que matou nossa mãe, e esses agora eram com o meu ex padrasto agressivo.  O que mais vinha por aí? Sinceramente, eu não queria saber.

Vovó me olha, unindo as sobrancelhas e levando a sua mão até a minha perna.

ㅡ O que houve, Marie? ㅡ pergunta, a voz calma, mas a expressão demonstrando o contrário.

Respiro fundo e coloco a mecha de meu cabelo bagunçado atrás da orelha.

ㅡ E-eu sonhei com Daniel de novo. ㅡ digo, a voz trêmula pelo choro engasgado. ㅡ Mas...ㅡ as palavras não querem sair.

ㅡ Meu pai? ㅡ Alice franze o cenho. 

Vovó pisca algumas vezes e diz:

ㅡ Sua irmã sonha com os seus pais. Os mesmos sonhos de sempre... ㅡ olha para Alice. ㅡ Querida, pegue um pouco de chá de camomila para a sua irmã?

Alice assente e se vira saindo sem hesitar. Mama me olha com cautela e murmura;

ㅡ Me diga, o que a assustou tanto? Lembrou de algo? ㅡ faço que sim, e minha garganta arde.

ㅡ Ele me batia. Muito. ㅡ encaro um ponto fixo, ainda tentando assimilar. ㅡ Como...? Como não lembrava disso?!ㅡ solto um ruído rasgado da garganta, acompanhado pelo choro entalado.

Vovó se entristece, parecendo pensar em algo, mas parece tão ruim quanto eu. Quando fala, sua voz sai baixa:

ㅡ Sinto muito, meu amor...ㅡ acaricia minha perna.

Na maior parte do tempo eu odiava a minha falta de memória, por conta das lembranças boas que eu havia perdido, mas, agora, desejava não me lembrar de nenhuma das surras de Daniel. De nenhuma das suas frases.

Baixo o olhar, me sentindo no fundo do poço, e meus olhos caindo na cicatriz que ele havia me deixado.

ㅡ Vai ver isso sem foi sem querer...ㅡ murmuro, o choro preso na garganta. ㅡ Não quero dormir, vó. Não quero sonhar com ele, ou com o acidente...ㅡ encaro o amuleto. ㅡ Seu amuleto não funciona como os brincos.

Ela não responde, apenas ajeita meu cabelo cuidadosamente.  O quarto fica quieto demais. Não sei mais o que dizer, apenas pensar.  Alguns minutos de passam, e os passos da minha irmã entoam pelo corredor.

ㅡ Aqui. ㅡ escuto Alice entrar. ㅡ Posso ficar aqui, se quiser, Marie...

A olho e, apesar de tudo, sorrio. Alice sorri de volta, mesmo que triste, e se senta após me entregar a xícara. O cheiro do chá invade as minhas narinas, me fazendo respirar fundo e balançar a cabeça.

Que se foda, Daniel.

Enquanto bebo, acalmando meus pensamentos, vovó e Alice permanecem no quarto, mesmo que em silêncio. Elas esperam que eu durma e só assim, presumo, que vão embora. Mas isso não impede que os pesadelos voltem, mas dessa vez é o de Jacob.



Me And The Devil ( Em Andamento)Onde histórias criam vida. Descubra agora