22º Capítulo - Me Dê a Força que Preciso

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Ouço o grito de Ava e o barulho da bandeja se espatifando no chão.

Sinto o feitiço que coloquei ao redor do quarto se dissipar devido a minha fraqueza. Ava entra imediatamente e corre para me socorrer. Tento expulsá-la, mas as palavras não saem. Ela rasga uma bolsa de sangue com os dentes e enfia na minha boca a força. No começo, o gosto é agridoce, mas quando desce pela garganta deixa um rastro de ferro e amargor. Não é ruim, mas também não é algo pelo qual vale a pena matar.

Instintivamente, eu agarro a bolsa de sangue como se ela pudesse fugir. O líquido preenche o vazio que sinto e me deixa inebriada, semelhante a um viciado em drogas que cede a seus desejosos sombrios. A textura é viscosa e escorre pelo meu queixo enquanto Ava me sacode e berra meu nome. Depois de alguns goles de sangue minha visão volta ao normal. Vejo um emaranhado de cabelos ruivos sobre mim e um par de olhos azuis tristes me encarando. Me engasgo com o sangue e começo a tossir compulsivamente.

Ava me deita de lado e tenta me ajudar com tapinhas nas costas. Minha tosse se transforma em um choro decadente e me encolho feito uma criança enquanto toda aquela escuridão começa a me quebrar por dentro mais uma vez. Ava me deixa chorar. Ela, mais do que qualquer outro, enfrentou a dor de ter seu futuro decidido por outras pessoas e sabe que nenhuma palavra poderá ser capaz de alterar o que sinto nesse momento.

🎵 (Aron Wright - Heartbeats)

Me arrasto até a parede mais próxima, me sento apoiando as costas e soltando os ombros como se o mundo inteiro estivesse sobre eles. Em silêncio, Ava se senta ao meu lado, e ficamos assim por longos minutos.

Quando meus pensamentos voltam a ficar insuportáveis eu finalmente pergunto:

- Como conseguiu? Como superou isso?

Ela me encara como quem diz que não existe fórmula mágica.

- Você só continua. Um dia depois do outro. Mesmo quando doí tanto, a ponto de não conseguir nem mesmo respirar, você continua... Você sobrevive. E todo dia você inventa um novo motivo para não desistir até que em algum momento, não vai mais precisar inventar. Com o tempo e um pouco de sorte, vai se dar conta de que aquela dor se tornou parte de você, de uma forma que ela não terá mais o poder de te manter de joelhos, mas como um combustível que vai alimentar a sua força.

- Parece uma maneira cansativa de passar a eternidade.

Minha constatação a pega de surpresa, mas sinto que Ava também já constatou algo parecido, em algum momento. Volto o rosto para a frente, encarando um borrão na parede do outro lado do quarto, então digo:

- Você tem olhos tão tristes. Foi algo que me chamou atenção quando te conheci. Fiquei me perguntando o que tanto escondia neles para serem tão tristes assim. Acho que agora tenho minha resposta.

- Eu passei por muito merda. - Refuta pensativa. - Somos duas ferradas, mas ainda somos diferentes. Sabe por quê? - Balanço a cabeça em negativa. - Você tem pelo que lutar. Eu não tinha nada.

Suas palavras me atingem de uma forma diferente. Me dou conta de que ao invés de me isolar para manter Carl e Harriet seguros, talvez eu deva usar a vida deles como incentivo para alcançar uma versão melhor de mim, se é que isso é possível em um corpo que não reconheço e definitivamente odeio.

- Não vou dizer a você o que deve ou não fazer, Sienna, mas vou dizer a você o que não funciona. Ficar neste lugar isolada enquanto sente pena de si mesma.

Parece óbvio, mas quando tudo o que você sente é dor fica difícil enxergar até mesmo as coisas óbvias. Respiro fundo e fecho os olhos. Essa não foi a vida que imaginei para mim, mas terei de abrir mão de todas as expectativas que criei se eu quiser encontrar um pouco de significado em tudo isso.

Herdeiros das Trevas - LegadosOnde histórias criam vida. Descubra agora