. . . . . ╰──╮ 50. Kai╭──╯. . . . .

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E tudo que eu posso sentir é este momento
E tudo que eu posso respirar é sua vida
Porque mais cedo ou mais tarde isso acabará
E eu não quero sentir sua falta esta noite
Iris - Goo Goo Dolls

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"Queria apenas carregar o seu fardo, carregar as suas dores. Queria que ele fosse feliz por mais que soubesse que não seria tão simples. Queria viver suas dores e tristezas, para que para ele não houvesse outro caminho que não fosse a felicidade." (Diário de Ayana)

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Eu estava com um pressentimento horrível. Yugo havia perdido a cor desde que Aylin disse que o amava, ele também sabia que o que estava acontecendo não era bom. Em todo aquele tempo, Aylin nunca havia soltado uma única palavra de carinho para Yugo assim como ele nunca havia feito isso com ela. Estava mais do que claro o que um sentia pelo outro, mas esse sentimento nunca havia sido exposto por palavras e ver isso revirou meu estômago.

– Kai – a voz de Yugo saiu abafada, mas eu notava o esforço que ele fazia para falar normalmente – eu vou para a cabine. Não serei útil lá fora aparentemente e sinceramente não me sinto bem. Se quiser vir, pode vir...

Ele saiu cambaleando pelos movimentos bruscos do navio, mas parte de mim pensou que talvez suas pernas também não estivessem colaborando.

Eu não sabia o que fazer, minha mente estava de novo em branco e quando dei por mim, fiz exatamente o que Ayana pediu para que eu não fizesse. Eu fui até o convés.

– Que diabos vim fazer aqui? – me perguntei em voz alta quando o nervosismo aumentou. Olhei a correria em volta. Os sacerdotes eram guiados para locais seguros por Aylin, que gritava sem parar para que todos pudessem escutá-la. Do outro lado estava Ayana e Trix, berrando ordens e ajudando em qualquer coisa que fosse necessário. Elas pareciam parte de uma cena de filme. Pareciam perfeitas naquele papel, ali já não estava a Ayana que vivia comigo e sim a Ayana que eu havia conhecido. A mulher respeitável entre seus exércitos apesar de todos os estigmas vindos de suas terras.

De fato, nada colaborava para que eu achasse normal a paisagem à minha volta. Ondas completamente descontroladas, águas escuras, tempo encoberto, um barulho ensurdecedor.

Incapaz de ajudar e vendo os olhares preocupados de Ayana na minha direção sempre que ela me perdia de vista, resolvi entrar para a minha cabine assim como ela havia dito. Aparentemente eu estava cansado, porque dormi por pequenos momentos apesar de sempre acordar com a ansiedade descontrolada. Foram horas terríveis, onde tive um sonho que se repetia a cada vez que o sono me vencia. Sacerdotes ao redor de um campo aberto, Ayana com um homem que exalava morte no centro e seus corpos sendo desfeitos em pó. Cada sonho eu acordava mais assustado, e a cada vez que eu acordava eu escutava como as ondas golpeavam o navio com impressionante violência. O mar parecia haver enlouquecido, assim como eu e não havia nada que eu pudesse fazer a não ser esperar ali deitado, confiando na capacidade de Ayana de tirar toda a tripulação daquela situação.

Choques tremendos, um barulho assustador, tudo escuro; adormeci de novo e acordei deitado no teto, quase me afogando. Tudo estava ao contrário, a sensação de pânico tomou conta de mim. Aquilo tinha que ser um sonho. Em alguns segundos outra onda bateu no navio e tudo voltou a posição normal, em completa desordem. Era um sonho, eu sabia que era, mas saí mesmo assim. Eu estava sozinho no navio e quando olhei para frente vi ondas altíssimas, vindas de todos os lados que quando se encontravam, explodiam acima de mim me levando rapidamente para o fundo do oceano. Eu estava me afogando e a primeira imagem que me veio à cabeça foi o corpo quase sem vida de Ayana. Abri os olhos e tentei ver a superfície para voltar a nadar até lá, mas a imagem que vi na minha frente me fez perder as forças, Ayana estava ali, completamente sem vida, emergida nas mesmas águas do oceano em que eu me afogava.

– Kai – escutei alguém de longe me chamando, mas tudo o que eu queria era chegar até o corpo da mulher a minha frente – Kai... – novamente a voz me chamou, mas dessa vez com mais força.

Senti como alguém me chacoalhava levemente pelo ombro e abri os olhos puxando todo o ar de uma única vez. Meus olhos assustados passaram por toda a cabine ainda intacta e pararam em Ayana. Seus olhos preocupados pareciam me estudar atentamente e como uma criança pequena eu a abracei ainda tremendo.

– Você está bem – falei tentando convencer a minha cabeça que parecia ainda não acreditar naquilo.

– Tudo bem, Kai – ela passou a mão pelo meu cabelo – foi só um pesadelo. Está tudo bem.

Não estava, um pressagio de morte terrível passou por mim. O mesmo que eu senti com Argus, o mesmo que senti diversas outras vezes. Eu não podia e não queria perdê-la. Meus braços a prenderam com ainda mais força, mas ela não reclamou, apenas me deixou assim até que eu conseguisse parar de tremer.

– Vem – ela me puxou ainda trêmulo até o convés do navio e parou de um jeito que era possível ver o mar, agora já bem mais calmo. Aquelas águas eram incríveis, em questão de segundos pareciam mudar, como se estivéssemos em vários mundos distintos. Vendo a confusão nos meus olhos, ela sorriu e se aproximou de novo – é por conta da barreira, ela deixa algumas partes do mar instável e por mais que a poucos metros à frente o mar esteja calmo, os trechos afetados sempre estarão daquele jeito. Agora esqueça isso – ela apontou para o mar.

Ali, próximo ao navio, havíamos recebido a simpática visita de uma turma de golfinhos brincalhões que pulavam alto, como se quisessem mostrar que estavam ali. Aquela cena fez com que o resto da tensão fosse embora. Um raio de sol batia direto no meu rosto, mas não me incomodava. Não havia mais um pingo de vento, ou um centímetro de onda sequer. Era difícil imaginar que fosse o mesmo mar.

– Ayana – minha voz saiu rouca e pigarreei para tentar controlá-la melhor – você acha que a sua profecia vai se cumprir?

Vi seu rosto perder a cor e soube que eu não precisava de respostas.

– Eu tentei chegar na barreira a todo custo – apesar do pálido que estava seu rosto, sua voz estava serena e tranquila – quando o mar puxou o navio para aquele trecho, nós tínhamos duas escolhas. Uma mataria a todos e a outra...

– E a outra? – olhei para ela, mas ela apenas apontou para frente, me mostrando um pedaço de terra ainda distante, mas já a vista. Estávamos em Nikatawa, o mesmo lugar que eu quis a todo custo fugir. Senti como meu mundo caía, mesmo assim, não quis me mostrar desesperado para ela – eu não vou te deixar morrer, Ayana – falei tentando soar seguro – vai dar tudo certo e vamos sair daqui juntos. Não podemos retomar a rota?

– Podemos, e esse é o plano – ela sorriu e se aproximou, encostando sua cabeça em meu ombro. Ela estava mentindo – o navio sofreu muitos danos. Vamos parar na costa e depois disso vamos retomar a rota para a barreira.

Escutá-la falar aquilo me entristeceu, ela seguia mentindo para mim, talvez na esperança de não me preocupar ou entristecer, mas doía de uma maneira surreal. Me doía muito suas tentativas de me excluir dos seus problemas. Ela estava mentindo e eu sabia disso.

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