. . . . . ╰──╮ 12. Kai ╭──╯. . . . .

84 16 97
                                    

Ela pode matar com um sorriso
Ela pode ferir com seus olhos
Ela pode arruinar sua fé com suas mentiras ocasionais
E ela só revela o que ela quer que tu vejas
Ela esconde-se como uma criança
Mas ela é sempre uma mulher para mim
Billy Joel - She's Always a Woman

【န ━━━━━━━━━━ ~DနM~ ━━━━━━━━━━ န】

"Meus olhos se abriram pela admiração e tenho certeza de que ele notou. Eu não gosto de ser injusta e para isso terei que admitir, sua coragem ao enfrentar o novo fez minhas emoções se moverem. Talvez de fato haja um coração para ser descoberto no fim das contas" (Diário de Ayana)

【န ━━━━━━━━━━ ~DနM~ ━━━━━━━━━━ န】

A imagem dela com a sua postura perfeita e sua pele de porcelana realçada por olhos verdes intensos invadia a minha cabeça a cada segundo, aquilo era irritante.

O ranger daquele velho navio não me deixava dormir, a imagem dela praticamente morta em cima de um bote a remo também não. O movimento de proas e mastros faziam ruídos e estalos que hipnotizavam o ouvido me impedindo de qualquer tentativa frutífera de manter os olhos fechados assim como o som da voz dela que seguia ali me atormentando a cada segundo. Apesar de tudo, a fina camada de nevoa descansando sobre as águas silenciosas e a falta de vento fazia com que todas as pessoas a bordo parecessem tranquilas, menos eu.

Impossível dormir nessa primeira noite a bordo e com uma lamparina em mãos, resolvi sair da pequena cabine que Ayana deixou destinada a mim. Vesti mais uma blusa que Argus me arrumou. Não era exatamente o tipo de roupas que eu vestiria em dias normais, mas pelo menos eu não estava mais vestido como se estivesse usando sacos de batatas ao invés de roupas descentes. Estava um frio cortante. Fiquei ali na proa, olhando para o mar, um hábito que começou a se fazer presente no último ano.

– Bom dia – a voz de Ayana me alcançou, mas não me virei para vê-la.

– Bom dia – respondi sem muito humor.

Ficar muito tempo no mar não era de fato algo que me agradava muito, apesar da frequência com que o fazia. Pisar em terra firme depois de tanto tempo era sempre um alívio, e eu necessitava daquele alívio rápido. Eu estava nervoso, impaciente e desesperado para ir embora. Se não fosse pelo rosto atrás de mim me lembrando constantemente que a minha decisão a salvou, eu sem dúvidas estaria me remoendo pelo arrependimento.

Ayana não falou nada, apenas se colocou ao meu lado para olhar o mar, segundo ela, já havíamos saído da zona mais perigosa, mas era sempre bom ficar atento com aquelas águas. Pouco a pouco as pessoas começaram a despertar, chegavam até a borda do navio com as caras amassadas de sono e os olhos molhados, alguns haviam chorado por toda a noite.

Eu tinha um enorme nó na garganta e aquele nó se intensificou quando sujeitaram um corpo e o jogaram no mar. Fiquei olhando aquela cena triste se desenrolar na minha frente. Pequenos objetos pessoais foram jogados ao mar junto com uma ou outra flor já murcha.

– Morreu durante a noite por conta dos ferimentos – Ayana falou ao meu lado. Eu não havia pedido explicações. Talvez ela nem estivesse falando de fato comigo – não podemos deixar o corpo no navio.

Foram as últimas palavras dela naquela hora. O pequeno cortejo fúnebre acabou e todos que estavam ali pareciam não ter tempo para sofrimento. Pouco a pouco o navio foi ganhando vida e todos se puseram a trabalhar. Agradeci em silêncio que ninguém tenha vindo falar comigo naquela hora.

O dia começou a nascer, envolto em neblinas baixas que fazia parecer ter nuvens no horizonte.

Focas e golfinhos surgiram brincando em torno do navio e ao passar por algo que parecia mais uma fronteira de energia, o mar subitamente mudou e o vento ficou mais forte.

– Bem-vindo as Ilhas Quebradas do Oeste – Ayana surgiu atrás de mim novamente – melhor se segurar. Amarre ao corpo e se segura firme.

Ela me ofereceu uma corda e ela mesma inspecionou o nó. A corda apertava a minha cintura e assim que ela constatou de que eu estava seguro, ela começou a gritar ordens. Todos se movimentavam de maneira rápida e eficiente, todos pareciam saber o que estavam fazendo. Eu já havia passado outras tempestades em alto-mar com as Kitsunes, mas nem de longe eu havia passado por isso em um navio veleiro que parecia que quebraria com a primeira onda que surgisse.

A situação a bordo parecia desoladora. O vento estava ensurdecedor, o mar parecia enfurecido, a roupa de todos estavam completamente encharcadas. As ondas que ultrapassavam o tamanho do barco me deixavam com ainda mais frio, sem contar os diversos estragos visíveis que causavam no navio.

Eu sabia melhor do que ninguém avaliar as dificuldades que eu teria daquele momento em diante. Estava entrando em um mundo que não me pertencia, com costumes arcaicos e esforços desnecessários no meu mundo. Sem contar que ali eu seria apenas um peso morto, ali eu não teria minha voz de líder. Pela primeira vez eu teria que ouvir a decisão de terceiros e teria que ver tudo acontecer sendo incapaz de solucionar os problemas que surgissem. Mesmo com tudo contra, eu não estava disposto a morrer naquele lugar, eu precisava encontrar saídas para apuros em que porventura me metesse e isso precisava acontecer desde aquele dia. Eu estava decidido a aprender a sobreviver ali e estava decidido a voltar para casa.

Se eu estava com medo? Eu podia jurar que o medo havia me deixado mais branco que os cabelos de Ayana. Ultrapassar o medo foi algo que eu fiz diversas vezes na vida. Era preciso vencer o medo e começar a trabalhar. Assim que eu me decidi, com uma determinação imensa, em meio à desordem dos elementos e a bagunça daquela situação, eu forcei os pés tentando a todo custo não cair. Cheguei de maneira ofegante até onde estava Ayana. Eu não precisei falar nada, talvez ela tenha lido no meu semblante que ficar parado não era uma opção para mim. Em seus olhos eu vi um misto de surpresa e ouso dizer que até um pouco de admiração. Ela acenou com a cabeça e gritou para se fazer ouvir através do vento.

– Começando pelo lado direito, puxe com força todos os cabos e tenha certeza de que todos os nós estão firmes. Irei verificar os nós dos tripulantes. Se algo estiver errado, tente me gritar – ela falou rápido, mas se fez entender bem.

Ouvindo sua voz firme e vendo seu semblante sereno enquanto seus cabelos brancos voavam com força por todas as direções uma calma repentina tomou conta de mim. Todo o péssimo humor que eu sentia pareceu ir embora junto com as ondas fortes.

Trabalhei com firmeza, mantendo os pés mais fixos possíveis e contra todas as possibilidades, eu estava encantado de poder ajudar. Naquele momento eu senti que se eu não tivesse tentado teria sido muito triste. Ninguém ali parecia querer desafiar o mar, a natureza sempre fora infinitamente mais forte do que o homem, mas todos pareciam conhecer os segredos daquelas águas, pareciam ter compartilhado momentos felizes e frustrações. Eles sabiam conviver com os caprichos do mar e sabiam tirar proveito daquilo. Aquilo tudo parecia extremamente poético dentro de mim. Pelo simples fato de eu estar ali, me debatendo entre um cabo e outro para me manter equilibrado, xingando as ondas altas que ameaçavam me afogar e maldizendo a minha sorte, eu também me sentia extremamente aliviado, feliz por ter a chance de conhecer aquele mundo completamente novo para mim.

Dois mundosOnde histórias criam vida. Descubra agora