Capítulo 214: Origem caótica de emoções

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Salto no tempo: Horas antes

POV Cristal

Os últimos meses não foram fáceis, mas melhoram a cada dia. Para distração, comecei a estudar sobre a cidade, imóveis a venda, comércios com os maiores lucros, infraestrutura e algumas leis locais. Consegui criar, por meio de publicações em sites de investimento, uma pequena rede de clientes em busca de estabilidade financeira e métodos mais seguros de investir uma parte das suas rendas. Não é um trabalho, mas um bom hobby que me ajudou a diferenciar a realidade das minhas crises.

Participei de algumas sessões de terapia com a doutora Amanda, mas não me senti confortável o suficiente para conversar com ela. Foi difícil explicar a minha paranoia dela contar o que conversarmos para as meninas, mas ela entendeu e apenas me pediu para tentar com outra pessoa. Ela me apresentou a psiquiatra Sophia, uma mulher linda, cabelos ruivos quase laranjas, sardas pelo rosto, olhos castanhos e um sorriso acolhedor. Por mais confuso que isso pareça, conversar com uma desconhecida é tão mais fácil. Em algumas sessões só consigo chorar enquanto ela me ensina algumas técnicas de respiração. Encontro com ela três vezes na semana em um pequeno consultório próximo ao centro da cidade. Dona Marli sempre me acompanha quando a casa está menos movimentada, já que as meninas costumam sair depois do almoço e a Luna as acompanha em alguns momentos. Quando preciso sair e Luna está na casa, Dona Marli pede para Gaspar a distrair com trabalhos na casa e nas vinhas. Ainda não consegui conversar com ela, apenas não sei como explicar. Não quero que ela entenda errado, confio minha vida a ela, só não consigo dizer.

Poucas semanas depois que nos mudamos, as meninas decidiram que o melhor para as crianças se resumia a um internato no interior onde visitas e qualquer aparelho tecnológico é proibido. Foi uma enorme briga para explicar essa decisão para os menores, enquanto Chiara e Charlie logo entenderam a situação e não questionaram. Os dois sempre escondem um celular para entrar em contato com o pessoal da casa enquanto estão na escola. Às vezes minha filha consegue fazer uma ligação e tenho a oportunidade de ver a Melissa também. Elas estão crescendo muito rápido, é o último ano da Chiara enquanto a Mel já está no quarto do fundamental.

Ter que me despedir delas fez os meus pesadelos piorarem. Sei que estão seguras, longe de tudo que fazemos, mas o medo de irem atrás delas por estarem longe me perturbava. Durante a noite sonho com elas, muitas das vezes estão a brincar ao redor da grande árvore. Teddy e Luna estão ao meu lado quando a voz daquele ser desprezível ecoa e um vendaval me joga para longe deles. Não consigo ver com clareza, como se todos os meus sentidos se misturassem. Risadas escandalosas seguidas de gritos, xingamentos, ameaças e um ruído insuportável. Mal conseguia diferenciar Scofield do Cold, eles se misturavam como uma aberração com o rosto a mudar sempre que olhava.

Com muita dificuldade conseguia focar em uma das várias cenas a passar em volta de mim, mas era como se os observasse a distância por uma tela de televisão antiga. Em uns momentos via Scofield a berrar com outro homem, em outro, era como se ele encarasse a minha alma com um sorriso satânico. O lugar em volta dele sempre é muito escuro para identificar, algo distorcido, irreal. Ele sabia onde me encontrar, esse era o sentimento que me cercava enquanto aquele olhar marcava a minha mente e sugava o pouco de sanidade que ainda restava.

Essa noite não foi diferente, Luna me acordou e não demorou para me abraçar. A luz me ajudava a entender que essa era a realidade, mas ainda não conseguia me mover, apenas sentia o bater do meu coração tão rápido como se pudesse sair do peito. Ela respirar comigo era como um guia para voltar os meus sentidos. Ajeito me no colo dela para sentir um pouco mais do calor do corpo dela, ter a certeza que não estava maluca, que é real. Sinto o toque dela se aproximar das minhas cicatrizes e instintivamente me encolho.

— Desculpa! Não foi proposital. — Ela desce as mãos para a minha cintura e decido me afastar.

— Isso não deveria ser um problema. Odeio isso! — Resmungo enquanto limpo a meu rosto.

Tento acalmar os meus pensamentos, todo o caos formado na minha cabeça.

— Vai conseguir melhorar. — Ela me convida para me sentar mais próxima. — Se compararmos na primeira semana que ficamos nessa casa e hoje, a sua evolução é indiscutível. — Rio de vergonha pelas noites que acordei a gritar como se houvesse um incêndio.

— Lembro de comentar comigo sobre os seus pesadelos. É uma memória verídica ou falsa? — As minhas memórias mais antigas ainda se misturam com alucinações.

— Verídica, nunca nos aprofundamos tanto nesse assunto, mas já tentei lhe explicar o que acontecia. — Luna observava o teto ao responder.

— Conseguia me ver, certo? — Preciso entender se são apenas pesadelos e ela passou por algo minimamente semelhante.

— De forma bem leiga é uma condição descoberta há pouquíssimo tempo e ainda não possui muitos estudos ou casos para conseguirem criar uma justificativa científica. Amanda saberá informá-la muito melhor do que eu, mas... — Ela pensava muito antes de falar e não era um assunto simples de compreender. — Naquela época, conseguia ver alguns momentos que você passou.

— Esse interesse repentino agora, por quê? — Não sabia como responder a esse questionamento.

Queria contar tudo, vomitar todas as coisas que via e ouvia, mas não era como se eu tivesse o controle disso. Uma trava me impedia de abrir a boca e sinto que mesmo se conseguisse, nenhum um som seria produzido. Apenas uma lágrima consegue escapar dessa prisão.

— Cristal, com o que você sonha? — Uma pergunta certeira como um soco no estômago.

— Ele ainda não desistiu de me encontrar, Luna. — Não sabia se ela conseguiu entender as minhas palavras devido aos soluços repentinos.

Deito e encaro o teto. O pouco de organização que havia conseguido nos últimos minutos voltara a origem caótica de emoções. Enquanto Luna tentava conversar comigo, mal conseguia raciocinar e compreender tudo que ela dizia.

— ... Não passavam de uma paranoia... Ainda tinha dúvidas e quanto mais fortes esses sonhos ficavam, mais medo tinha deles... Enlouqueci, não soube lidar. — Enquanto ela falava podia sentir um receio e uma angústia nas palavras.

— O que a ajudou? — Questiono ao sentir que progressivamente retornava o controle dos meus pensamentos.

— ... Ficar acordada resolveria o problema... Não senti que alterou muito a minha rotina, na verdade, tinha mais tempo para treinar e tentar encontrar alguma dica... Terceiro dia, os problemas começaram, estava frustrada, irritada. O meu humor se tornou desastroso ao ponto das meninas me evitarem. Não importava o que elas dissessem, conseguia um jeito de encontrar um erro mesmo que mínimo e xingava quem quer que estivesse na frente.— Ela explicava concentrada nas próprias memórias quando rio aliviada por finalmente conseguir compreender as palavras dela. — É! Nem posso me defender, sentia como se tudo e todos a minha volta, estivessem contra mim. Não conseguia relaxar ou controlar essas explosões de raiva. As meninas me forçaram a me consultar com a Doutora novamente, nisso ela me receitou alguns medicamentos. Essa foi a minha segunda e última tentativa, deitava na cama, tomava os remédios e em segundos estava apagada. Acordava no dia seguinte sem me lembrar com clareza de como cheguei na cama, mas o importante era que os pesadelos pararam.           

Nem a distância nos separa (Continuação)Onde histórias criam vida. Descubra agora