16. falar do nosso amor

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Ela foi pra casa.
Dispensou Creusa, fingindo que precisava da casa vazia para trabalhar num caso importante e difícil. Creusa logo se enfiou na casa de Brisa, tentando não ocupar a chefe. Sabia que quando Heloísa estava assim, com poucas palavras, pouca paciência, mal olhando para o lado.. Boa coisa não havia de ser.
A empregada rezou por Heloísa, achando que de fato ela estava envolvida em algo que dava trabalho, alguma gangue, alguma máfia. Se preocupou pela vida de Stenio e rezou por ele também, de quebra. No final da reza, sempre pedia que Deus e seus anjos se organizassem de maneira bem feita para unir os laços deles dois em comunhão mais uma vez, mesmo que com tantas provações.

Do outro lado da cidade, Heloísa tomou um banho quente. Se recusou a chorar. Engoliu a seco todo aquele sentimento e a agonia que sentia em seu peito. O celular em cima da bancada denunciava Stenio ligando para ela. Ao recusar, Heloísa buscou pelo contato dele em sua agenda. Removeu a foto dos dois, e alterou o nome de "amor ❤️" para "Stenio Alencar". Parecia mais apropriado assim.

Heloísa encarou seu reflexo no espelho. O tempo tinha deixado sua marca. Ainda se cuidava, era feminina e vaidosa. Gostava de prestar atenção em si, e se mimar. Mas as marcas do tempo.. Essas não poderiam ser apagadas. Sabia quem em seu jeito, em sua personalidade.. Todas suas ações denunciavam tantos divórcios, tanta instabilidade emocional. E agora, como se não bastasse, estava se afogando em mais uma magia, por causa dele. Sempre ele.

Heloísa deixou o celular no silencioso e foi para a penteadeira. Deixou um som ambiente baixo. Tim Maia cantava "eu amo você" bem baixinho, e as memórias daquela noite deliciosa com Stenio vinham como se ele ainda estivesse ali, na sala do apartamento dela, os braços ao redor de seu corpo, sussurrando a canção em seu ouvido.

Eu amo você, menina.

Aquela foi provavelmente a última vez que ele disse isso para ela, se ela se lembrava bem. Numa briga, ele decidiu viajar para a Espanha para visitar um cliente e simplesmente não respondeu mais. Heloísa achou que ele estava fazendo tratamento de silêncio. Nem imaginava a realidade por trás dos fatos.

Ela decidiu abrir a gaveta que tinha fotos reveladas com ele, com a família. De quando se conheceram, ainda tão jovens. Bêbados, na maioria das vezes, sempre na companhia dos amigos. Maitê fazia falta. As fotos da gravidez de Drika, as fotos dela crescendo pequenininha. De repente uma pausa da presença de Stenio ali, conforme a menina crescia. E depois ele voltando. E eles já mais velhos. Eles com o neto, eles se casando pela primeira, pela segunda vez, pela terceira vez.

Será que devia contar para ele que ainda eram casados? Ele ia surtar. Mas quanto mais o tempo passava, mais a situação piorava, e mais difícil tudo se tornava também.

Sentiu a lágrima escorrer sem querer por todo seu rosto, e antes que pingasse, a secou com o polegar.

O queria culpar.
O queria odiar.
Mas no final das contas só conseguia pensar em como sua cabeça também estaria bagunçada, se estivesse em seu lugar.
Que ele não lhe devia nada, e que ela queria cobrar tudo dele porque se lembrava bem de quem era Stenio Alencar. O dono do sobrenome Alencar, que a ela também pertencia.
Ela entendia seu próprio lado, mas também entendia o dele. Só estava cansada de entender. Não queria mais entender. Queria ser cuidada e amada por seu amor. Era isso que queria.

Queria seu amor, a abraçando bem forte na cama deles dois. Carinho até adormecer.

Teria uma longa noite pela frente.

¤

- Oi, Heloísa. - A voz grossa percorreu o corpo dela por inteiro.

Levantou o olhar e o viu ali, parado na porta da delegacia.

- Stenio. - Ela respondeu, como cumprimento. Em seguida, voltou a atenção para a papelada à sua frente. - Como eu posso te ajudar?

Ela ignorou por completo a presença dele ali. Hoje ele teria seu jantar com aquela mulher, e ela definitivamente não queria saber dele.

- Tentei te ligar algumas vezes e você não me atendeu. - Ele murmurou, e logo ela pôde notar a frustração em sua voz.

- Eu estou ocupada. Foi por isso que você veio até aqui? Pra reclamar que não foi atendido?

Yone sentiu o clima pesar e entendeu como
uma deixa.

- Doutora, vou pegar um café. Quer? - Se ofereceu.

- Aham. Me vê um duplo, sem açúcar. Leite de amêndoas, se tiver. - Heloísa se virou para a investigadora dando uma atenção que não tinha dado a Stenio.

E ele estava começando a sentir a diferença de tratamento.

- Quer levar meu cartão? - Heloísa ofereceu. - Leva, da última vez quem pagou foi você. - Fez questão, pegando o cartão de dentro da carteira e levando em direção a amiga e também colega de trabalho.

Stenio observou como ela passou super perto dele, e não se dignificou a cumprimentar com um beijo no rosto, nada. Assim que Yone saiu, um clima esquisito ficou na sala. Ele ainda estava aéreo, sem entender muita coisa. Eram muitas informações, muitas meias-informações, na verdade.

- Da pra você me falar logo o que quer? Eu tenho muita coisa pra fazer. - Heloísa voltou a falar com ele sem olhar, de fato, para ele.

Os óculos e grau da prada, pretos, refletiam no computador a sua frente. Ela digitava ferozmente enquanto tinha uma pilha de papéis em sua frente.

- Eu passei aqui pra ver se está tudo bem. Te achei esquisita ao telefone, você não me atendeu mais. E também.. Tem um cliente. - Ele trouxe a informação, coçando a nuca, um pouco incômodo.

- Que cliente? - Heloísa se virou para ele mais do que imediatamente, farejando que algum absurdo estava por vir.

- Na verdade é o filho de um cliente. Ele vazou as fotos da namorada, porque descobriu que estava sendo chifrado.. Coisa de adolescente, você sabe. E agora a menina processou ele, e meu cliente queria ver se tem algum jeito de a gente reverter isso.. Retirar isso, fingir que não aconteceu. Porque não vai pegar bem.

Heloísa forçou um sorriso para ele.

- E a menina? Vai reverter isso também? A humilhação que ela passou? A vergonha? O fato de mais gente do que ela permitiu saber exatamente como ela é por debaixo das roupas? A gente vai retirar isso também? - O atacou, diretamente.

- Uau. - Stenio se impressionou. - Então essa era a dinâmica? Você se recusando a fazer o mínimo, eu te pedindo coisas mínimas.

- Nada disso é mínimo. - Heloísa chamou a atenção dele. - Estamos falando da vida da garota.

- E a vida do garoto?

- Quem fez a merda foi ele. Ele que lide com as consequências.

- E as consequências dela? - Stenio argumentou.

- Sobre o trair? Eu não sei, o destino, Deus, seja o que for.. Cuida disso. A justiça não devia ter sido feita com as mãos dele, e agora ele aprendeu muito bem isso. Bom, porque assim da próxima ele para pra pensar antes de cometer um crime desse.

- Eu realmente não sei como fomos casados.

- Cala a boca. - Heloísa implorou, num surto de raiva, onde sua voz saiu mais alta do que deveria num ímpeto de cansaço. - Só... Cala a sua boca. Pelo amor de tudo que é mais sagrado. - Ela pediu. - Você não é ninguém pra falar do meu relacionamento com você. Não te culpo por não se lembrar, mas te culpo por você achar que tem algum direito. Não abra sua boca pra falar do nosso amor. - Ela mandou, o ameaçando. O olhar mostrava que não estava para brincadeiras.

- Eu..

- Aqui, doutora, o café. - Yone entrou, levando os copos até a mesa de Helô, junto com seu cartão.

Heloísa se levantou, pegando o cartão e enfiando no bolso.

- Pode ficar com o café, perdi a vontade. - Disse, ainda encarando Stenio, escolhendo sair dali o mais rápido possível.

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