2. seu Stenio, e este Stenio

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Quando ele acordou, sentiu um carinho em seu cabelo. Um cafuné delicioso, um carinho sem igual. Era quase como se um gesto tão pequeno estivesse carregado de amor. Estranhou. Quem estaria fazendo isso? Já não morava mais com seus pais, não tinha namorada. Olhou ao redor e viu a mulher bonita que o tinha recebido -no que disseram que era seu apartamento- com um beijo na boca. Um beijo de língua delicioso e cheio de saudade por parte dela.

Não conseguiu evitar achar esquisito aquilo. Se sentou na cama, se afastando e fazendo com que ela o soltasse. A mulher acompanhou o corpo dele com a mão quase como se não quisesse parar.

Stenio a olhou, com estranhamento.

- Ah, você ainda está aqui.. - Comentou, um pouco desconfortável com a presença dela.

- É, eu.. - Heloísa ficou olhando para ele, atentamente. - Você realmente não se lembra de nada? De mim? De ninguém?

Ele se sentiu um pouco envergonhado. Encarou a parede a sua frente, tentando buscar em sua memória.

- Me desculpa. Eu só sei o que me disseram. Que eu fui sequestrado, sei lá. Algo do tipo. Aparentemente me meti numa merda das grandes, e nem disso eu me lembro.

Heloísa olhava para ele, incrédula.

- Stenio, se for brincadeira.. Já entendi. Já pode terminar de brincar.

Ele a olhou, extremamente confuso. Gaguejou, e tentava de alguma forma explicar para aquela mulher que ele jamais brincaria com algo assim. Heloísa assistiu o homem todo machucado, sentado na cama sem camisa e com os vergões por todo o corpo. Ele não estava mentindo, e aquilo não era uma brincadeira.

Ela suspirou.

- Você se lembra do que você passou durante o sequestro, pelo menos?

Stenio negou.

Heloísa sentiu uma lágrima escorrer por seu rosto. Merda, queria ser durona, pelo menos na frente dele.

- E você.. Ta bem? Fisicamente? Ta se sentindo bem? - Quis saber, passando a mão pelo braço dele, carinhosamente.

Stenio desceu o olhar para a mão dela encostando nele o tempo todo. Meu Deus, como era esquisito ter uma mulher aleatória em seu apartamento passando a mão nele o tempo todo, extremamente cuidadosa, carinhosa e preocupada. Enquanto ele nem sequer sabia quem ela era.

- Estou bem. - Ele afastou o braço, e pôde perceber na mesma hora a feição de decepção dela. Heloísa tinha em seu rosto toda a dor que a recusa dele a estava fazendo passar. - Na medida, do possível, quer dizer.. - Stenio emendou o assunto, tentando disfarçar o constrangimento deles dois. - Considerando tudo.. Estou bem e respirando. Mas sinto muita dor na costela, e meu rosto continua um pouco inchado aqui na região do olho. - Ele apontou, conversando.

Stenio sempre foi esse cara extremamente comunicativo e simpático, ela relembrou. No entanto, a diferença entre seu Stenio e este Stenio era gritante. Ela podia ver como ele só estava conversando com ela por pura educação.

- Certo. - Heloísa se afastou, se levantando. Os olhos estavam lacrimejando, então ela se forçou a superar e fingir que nada estava acontecendo. - Amm.. Bom, eu sei que você não se lembra de mim. Então.. Prazer. - Ela ofereceu a mão para ele, educadamente, num gesto para que ele pegasse sua mão.

Stenio pegou a mão delicada dela, apertando num cumprimento.

- Eu sou a Helô. Heloísa Sampaio, delegada de crimes virtuais. Eu.. Am.. Nós dois.. Estávamos.. Namorando. - Ela deu de ombros.

Não era verdade, mas essa era uma forma muito mais simples de explicar.

- Nós também já fomos casados. - Ela se explicou.

A surpresa no olhar dele era quase hilária, se a situação não fosse a pior do mundo. Achou fofa a carinha, os olhos semi-arregalados, a boca se abrindo num perfeito O. A expressão de descrença quase a fez rir.

- Nós? Eu e você, a gente..? - Ele gesticulava apontando para si mesmo e para ela, estranhando.

- Várias vezes. - Seu instinto foi fazer o símbolo do numero no ar, enquanto dava uma risadinha, um pouco tímida.

Ela não gostava muito de falar sobre isso, sempre sentia uma certa vergonha por ter dado tão errado com ele. Mas tinha algo em ter que explicar a situação dos dois para ele mesmo, que a deixou ainda mais incômoda do que o normal. Certeza que tinha algo a ver com o fato de que ninguém mais entendia o romance dos dois, se não fossem eles dois. E dessa vez, Stenio havia abandonado o barco e apenas Helô enxergava a beleza e a tristeza nos relacionamentos falidos.

- VÁRIAS? - Ele se surpreendeu.

Ela assentiu. Precisava sair dali o mais rápido possível, ou iria chorar na frente dele.

- Pois é..

- Nós estávamos juntos quando eu sumi? Estávamos juntos pela terceira vez? - Ele pediu por confirmação.

Heloísa riu leve, tentando amenizar a seriedade do assunto. Não queria que ele se sentisse mal por não lembrar, a culpa não era dele. Ela só conseguia pensar em como era solitária a sensação de amar sozinha. Afinal, ele nem sequer se lembrava que ela existia, como ia amá-la como sempre? Não ia. E essa era sua nova realidade.

"Pelo menos ele não está morto"

Era como ela tentava acalmar a si mesma, enquanto olhava nos olhos dele. Os olhos opacos, que não tinham a mesma sensação de antes, nem o mesmo calor, nem o mesmo amor. Ele a olhava como ela olhava para qualquer outro. Como se olha para uma pessoa que está do seu lado no metrô. Como se olha para um desconhecido.

- Sim. Nós.. Nos amamos bastante, apesar dos apesares. - Heloísa deu um sorrisinho fraco para ele.

Stenio evidentemente não sabia onde enfiar a cara.

- Me perdoa mesmo, eu não me lembro de merda alguma. Sinto muito por isso. - Ele começou a se justificar.

Heloísa respirou bem fundo, e sua respiração falhou tentando fazer isso. Reuniu todas as forças que ainda haviam sobrado no âmago de seu ser, e se virou para ele com a voz mais gentil e o sorriso mais amoroso que tinha guardado só para ele.

- Tudo bem você não se lembrar. Só estou te contando tudo isso, porque você não tem ninguém aqui no Rio além de mim. Portanto, vou estar com você por um tempo, tá bem? Só até.. Você estar bem.

Ela engoliu a seco. Tinha um prazo de validade, e sabia disso. Estaria com ele até ele estar fisicamente bem, mas depois disso.. Tinha perdido o amor de sua vida para sempre.

Stenio assentiu mais do que imediatamente, agradecendo a atenção e o cuidado dela. Helô se esforçou para sorrir, dizendo que ele não precisava agradecer nem se preocupar. Disse que iria para a cozinha pegar os remédios dele para dor, já que o horário se aproximava.

- Heloísa? - Ouviu a voz dele chamar, quando estava saindo do quarto.

- Oi? - Ela deu um passo para trás, olhando em sua direção.

Stenio deu uma olhada nela, dos pés à cabeça.

- Você é linda. O meu outro eu teve sorte de conseguir se casar com você várias vezes. - Ele disse, meio sem pensar. Queria confortar a moça, por ver a dor nos olhos dela com tanta recusa e afastamento. No entanto, achava que tinha acabado de piorar tudo dizendo isso.

Soube exatamente que tinha quebrado o coração da mulher em um milhão de pedaços quando disse isso, por mais que não intencionalmente. Assistiu enquanto ela saía dali fingindo estar bem, na velocidade da luz. Se puniu, e fez uma anotação mental para ficar quieto da próxima vez.

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