Capítulo 9

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Mundo mortal.

Dentro da barreira, em uma casa simples, no limite do território do Terceiro Palácio.

Nove anos atrás.

Bran

T

rês e vinte e cinco da manhã. Parecia que eu sempre sabia sobre o tempo. Sempre sabia qual era a hora. Os segundos escorriam pela minha intuição, como um sexto sentido correndo contra o tempo. Contra minha pele. O tempo me falava coisas, e agora ele me alertava que já era o momento de ir embora. Abri os olhos e tentei sentar na beira da cama. Mas bati os joelhos na parede do quarto.

Se é que dá para chamar essa espelunca de quarto.

Era apenas um vão que cabia uma cama de solteiro e uma cômoda caindo aos pedaços. Bem apertado.

Dentro de algumas horas, eu não estarei mais aqui.

Levantei-me, mas não acendi a vela.

Encarei a camisa branca do uniforme, o emblema da Corte de Fogo e Cinzas, o escudo com um cálice e a coroa em cima dele. O vermelho do bordado queimava meus olhos como uma chama, assim como o símbolo do outro lado, das pessoas marcadas para serem enviadas para lá.

Eu havia sido marcado também.

Era uma das crianças que tinham resquícios de energia primal dentro de si, a Centelha, como chamávamos. Humanos que passavam pelo Circulo do Mundo e tinham energia primal dentro de si eram mais fortes, mais rápidos, inteligentes e bem menos suscetíveis a doenças. Antes da Quebra dos Tempos, todos os humanos eram assim, inundados pela energia primal, saudáveis como nunca. Traímos o Trono Negro e o tratado que regia nosso sangue removeu essa centelha poderosa do nosso DNA.

Pouquíssimos de nós a possuíam, e os que tinham eram mandados para lutar protegendo as fronteiras do Celenials que queriam retornar ao poder.

Segurei a sacola de lona e estava paralisado de frente para a cômoda. Ainda não parecia real. Eu podia contar nos dedos de uma mão o que havia dentro dela. Uma camisa, uma calça, um par de botas surradas e dois cavalinhos de madeira. Era preciso subir na cama para abrir a porta e passar, mas fiquei ali, parado, escutando...

Ouvindo o tempo passar.

— Ele não vai! — Minha mãe falou alto e decidida.

— A decisão não é sua, Alisai. Nós já falamos sobre isso, e minha decisão final já está tomada. Ele vai — disse ele firme.

Com autoridade.

De forma indiscutível.

Pelo silêncio que se arrastou como se fosse uma eternidade de tempo, os dois estavam travando uma guerra de olhares.

Parecia que ela havia perdido.

— Ele é só uma criança — insistiu, suplicante.

— Ele já tem sete anos. Não temos para onde correr.

Minha mãe começou a chorar, aos berros.

— Ele tem seis anos, Lian, seis! — Ela gritava mais, fazendo sua voz atravessar a porta — E você quer atirar ele a esses cães imundos da guarda, para cumprir esse lixo de tratado.

— Ele ficar aqui também não muda nada.

Eu não podia discordar do meu pai.

Ele tentou explicar a ela, tentando apaziguar a situação e fazê-la se acalmar. Quando mamãe ficava irritada, tudo vibrava. Tudo parecia se arrastar. O ambiente ficava pequeno, e sua chateação virava o centro das atenções por um longo período. Parecia que mamãe sempre controlava nosso tempo.

No fim, ela comandava tudo.

Inclusive, meu pai.

Ao contrário do que parecia, papai amava minha mãe. O topo da cabeça dela batia no ombro dele, e, ainda assim, papai sempre estava de joelhos para minha mãe.

Quando parecia que mamãe havia se acalmado, papai continuou:

— Abrahan vai fazer sete anos daqui a uma semana — falava devagar — E que escolha nós temos?

Ele a esperou responder.

Nada.

Continuou:

— Alisai, volte a razão, eu lhe peço. É a Lei. É isso ou eles vão invadir essa casa e me levar ou, pior, levar você. E aí, quando você estiver de frente para eles e não puder fazer...

— Cale a boca, Lian — advertiu ela baixinho.

— O quê? — Perguntou meu pai, confuso.

Ela se inclinou em direção a minha porta. Eu podia ver sua sombra por baixo.

— Bran, você está acordado? — ela me chamou com sua voz meiga.

Saí do quarto. Olhei para meu pai de cabeça baixa. Nós dois trocamos aquele olhar que indicava que a melhor decisão, para o bem do meu pai, era não teimar com ela e ficar calado. Depois, olhei para minha mãe e senti pena dela.

Ninguém queria um filho morto tão jovem, nem eu queria morrer. Mas ser um mortal enviado para o outro lado da barreira significava isso.

Sentia que meu tempo ali estava se esgotando.

Que diferença faria? A morte rodeava aquela pequena aldeia. Como papai dissera: não mudaria nada. E nós dois sabíamos disso. Por isso eu não questionava meu destino.

— Mãe, preciso de uma corda nova para usar como cinto.

Andei até a mesa esculpida pelo meu pai e tentei forçar um sorriso, para tranquilizá-la e mostrar que eu estava bem. Que ficaria tudo bem.

Nada ficaria bem.

Meu pai e eu éramos muito parecidos. Tínhamos o mesmo cabelo, preto como ébano, e os infinitos olhos verdes, verdes demais, como se tivéssemos sido beijados pelo tempo. Minha mãe também tinha olhos verdes, mas os seus eram mais intensos e penetrantes. Como se tivesse alguma criatura dentro deles. O problema era que eu tinha ossos compridos como meu pai, o que me fazia parecer mais velho.

Nossa casa tinha apenas três cômodos, todos pequenos. Não era bem uma casa, as paredes eram feitas de madeiras finais e, do lado de fora, havia um pequeno fogão a lenha feito de tijolos, embutido na parede.

— Pelo menos coma alguma coisa — disse minha mãe, sorrindo.

Encarei seu rosto e memorizei tudo o que pude.

Eu vou sentir tanta falta desse sorriso.

Olhei para a mesa e vi uma jarra de água barrenta, arroz, pão, carne seca e farinha. Ao seu lado, um caixote. Apertei as mãos ao lado do corpo e respirei fundo. Era tudo o que tínhamos ali, no limite da barreira no Terceiro Palácio. Eram poucas as coisas que tinham disponíveis para o comércio na feira semanal.

— Não preciso de muito, mãe — expliquei.

Naquela noite, eu comeria; eles, talvez não. Nenhum comerciante com bom senso ia ali. Não havia segurança, nem dinheiro. E algumas famílias mais abastadas plantavam seu próprio alimento e vendiam para os territórios mais seguros.

Bem longe... no centro da barreira.

Ali só havia gente doente, fome e pessoas morrendo. Meus pais precisavam comer muito mais do que eu. Já fazia um tempo que não sabia o que era comer um bom prato de comida. Senti meu estômago doer, mas eu ignorei.

A fome sempre passava quando não te consumia.


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