Capítulo 5

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Kay

N

inguém decidia se tornar um Pilar. Para isso, era preciso ser escolhido pelos Caminhos. E depois de ser escolhido, não havia mais volta. Você se tornaria algo próximo a um deus, um ser quase ilimitado, mas a vida seria um constante vigiar das próprias costas, fugindo ou sendo capturado, tratado como um animal, até a morte.

Todos queriam minha Runa.

Não era possível se tornar um Pilar por pura força de vontade, mas alguém podia se tornar um Usuário de uma das cinco Runas da Criação se matasse um Pilar. A cobiça pelo artefato era tanta que as pessoas matariam seus próprios irmãos para possuir a runa que habitava meu corpo. Ela transformava o possuidor em algo semelhante a mim, permitindo que o Usuário moldasse o Fogo quase como eu.

Adam treinava comigo quase todos os dias, mas, para meus inimigos tirarem a runa de mim... precisariam me matar primeiro.

A luz emanava do traje preto ajustado ao meu corpo, e a malha grossa moldava-se perfeitamente a mim. A pedra se acendeu, pressentindo a ameaça vinda de Adam, com um brilho carmesim e dourado. Sentia o poder de fogo pronto para emergir da minha pele e estraçalhá-lo

Meus coturnos de couro preto rasparam a areia da praia quando recuei, flexionando os músculos das pernas para evitar o golpe. Os coturnos eram temperados em pó de crocidolita, o único minério capaz de suprimir o poder feérico, misturado no tecido do traje feito para guardar meu poder. Tanto os coturnos quanto as roupas serviam para conter a aberração dentro de mim e evitar que tudo o que eu tocasse se incendiasse. Soltei um pulso de calor no chão, aliviando a pressão das chamas fervendo nas minhas veias e exigindo um contra-ataque.

Apertei o cabo da espada com as mãos enluvadas, e minha boca se contraiu de irritação. Não tive tempo de erguer a espada translúcida para me defender, e Adam me finalizou.

Com maestria.

Ajeitei a coleira de crocidolita ao redor do pescoço com agonia, sentindo a pedra pinicando incessantemente minha pele. Ao menos, agradecia pela combinação com o traje impedir meu poder de vazar e incendiar o mundo.

Retorci o nariz porque a pedra fedida tinha um cheiro rançoso.

Adam arqueou uma sobrancelha preta em desafio, alisando a ponta da língua no canino esquerdo afiado. Faíscas vermelhas salpicaram na íris preta enquanto ele sorria, vitorioso, os cabelos negros ondulados balançando ao vento.

Revirei os olhos.

A irritação pela derrota queimava dentro de mim.

Virei-me novamente para o mar. Por algum motivo, a runa em meu peito estava muita agitada, fazendo meu coração bater mais forte e cantando... O fio dourado do Caminho dentro de mim — na minha alma — estava cantando como um louco em direção ao pedaço de terra do outro lado.

Me desconcentrando.

Um Caminho só cantava para sua outra ponta. Seu parceiro e igual. Quando o Caminho cantava para o vazio, era um mau presságio. Fiquei pensando se naquele momento, por fim... seria o dia da minha morte. Talvez os Caminhos estivessem me avisando que havia chegado ao fim da minha agonia constante.

Finquei a espada na areia e encarei o mar, olhando o pedaço de terra que, por cinco quilômetros de água não se conectava ao deserto de neve congelado do outro lado.

As ondas batiam nas minhas botas e evaporavam. Estreitei os olhos, fixando o olhar naquela terra distante. O vento forte da praia soprava as mechas curtas e curvas dos meus cabelos para todos os lados. O Caminho no meu peito voltava a estremecer, mandando-me para dentro do mar, até o pedaço de terra do outro lado.

Cocei a nuca, roçando a raiz escura do meu cabelo com os dedos enluvados, as luvas pretas do mesmo material. Estreitei bem a visão para conferir se meus olhos imortais conseguiam focar em alguma coisa do outro lado. O cabo de uma espada bateu com força nas minhas costas, derrubando-me de cara no mar.

A água chiou ao entrar em contato com a pele do meu rosto, o único pedaço exposto. Levantei tossindo, firmei os tornozelos, mexi os ombros sentindo um formigamento nas costas, e me virei de frente para ele.

— Que droga, Adam! — reclamei.

Ele girava o punhal elegante entre os dedos, os cantos da boca repuxados num sorriso.

— O que foi, Kay? Você não costuma ser tão distraído assim. O que você tanto encara do outro lado, nas praias do mundo mortal? — Adam se posicionou para o ataque novamente.

Olhei para trás mais uma vez, voltando a encarar as praias.

— Nada. Não era nada. Achei que tinha... sentido alguma coisa.

Vasculhando a costa daquela terra, e meu peito vibrou como um desgovernado. Peguei a espada pelo cabo dourado, tirando-a da areia. Entrei em posição de ataque, mas Adam desistiu.

— Não quero mais lutar. Fica fácil ganhar pela terceira vez com você distraído assim. Você nem me cansou hoje, caramba.

— Foram duas.

— Acabei de te derrubar de cara na água — debochou.

— Aquilo não contou. Foi trapaça!

Encarei ele.

— Ah, tá. Porque seus inimigos vão ser bem honestos.

Revirou os olhos e se virou, começando a andar, mas não na direção do acampamento montado à nossa frente. Com o braço direito que segurava a espada dobrado atrás do pescoço, Adam caminhava pacientemente, as longas pernas na calça preta.

O acampamento que eu comandava, me lembrei.

— Para onde você está indo?

— Vou para o território mortal com Aidrew. Cobrar o tratado — ele respondeu.

Observei Adam enquanto ele girava a espada nos dedos.

— O que foi, Kay? Já está sentindo minha falta? — zombou, arqueando as sobrancelhas escuras para mim.

Revirei os olhos com impaciência.

— Não saia para a festa do solstício de inverno antes de cumprir suas obrigações. Os acampamentos do Leste estão criando rixas de novo entre os soldados.

Ele finalmente prestou atenção.

— O que foi dessa vez? — perguntou, intrigado.

Balbúrdia era com ele mesmo.

— Brigando por barris de bebida. Um quartel roubou do outro.

Adam sorriu de maneira travessa e bufou.

— Nada mais justo. Deixe que se matem!

Por que eu ainda pedia a opinião de um bêbado miserável!? Encarei seus olhos com ironia e provoquei:

— Vou ter que chamar Conan? Não tem vergonha, Adam, de deixar uma fêmea de um metro e meio fazer seu trabalho?

Adam pôs aquele sorriso demoníaco no rosto e caminhou rapidamente em minha direção.

— Não se esqueça — explicou, empolgado — que ela é uma fêmea de um metro e meio tétrica, e faz os pesadelos deles terem pesadelos. Ela mete mais medo neles do que nós dois juntos.

Ele sorriu para mim, orgulhoso.

— Trabalho de disciplina concluído bem rápido — eu ri. — E eu não tenho nem um pingo de vergonha.

O Festim dos OssosOnde histórias criam vida. Descubra agora