capítulo 18

27 5 0
                                    

Amélia

N

aquela noite não havia pesadelos, sonhei com o céu e grandes portões de vidro, enquanto uma mão grande e quente me guiava por um jardim de rosas negras. O cheiro do perfume delicado das flores tocava meu nariz, o vento frio beijava delicadamente minha pele.

Eu não conseguia ver com clareza o seu rosto, mas ele era alto, havia o som de um farfalhar de asas. O homem apertou meus dedos e sorriu. Ele parecia um anjo violento, a pele de dedos quentes me aquecia como o sol e aquele sorriso era calmo, celestial e reluzente.

Jamais vi aquele lugar.

Jamais vi aquele homem.

Tinha certeza de que nunca pisei em um lugar como aquele, mas parecia que eu o conhecia de uma eternidade distante. A sensação quente em meu peito, nostálgica, me dizia que ali, seria um lugar que eu chamaria de casa.

As mãos.

O toque dele parecia um lar.

Acordei com uma queimação nos olhos. Lágrimas? Uma sensação quente e ondulante no peito, confusa com aquele sonho.

Toquei a humidade em meu rosto.

Eu estava chorando?

Tentei me levantar, mas a dor me alertou para a realidade paralela aquele sonho. Respirei devagar. Minha situação atual não me dava escolhas, a não ser voltar para dentro daquele lugar. Quanto valia o preço da liberdade de um ser humano? Ficava me perguntando se, às vezes, fazer o certo era ir aonde não queríamos ou estar com quem mais odiamos. O ódio era uma parte intrínseca da minha carne, e a revolta também.

Estremeci.

O fato de não poder acender uma fogueira à noite era o que fazia eu me aquecer por horas pela manhã. À noite, eu quase congelava de frio; enrolava-me nas roupas grossas de peles extras.

Havia dias que eu sentia muito frio. Um frio violento e selvagem. Um frio que penetrava até a alma, que parecia que eu estava sendo beijada pela morte. Várias e várias vezes. Ele me invadia uma vez a cada poucos meses. Durante os dias gélidos, eu me embrulhava nas peles e roupas extras e imaginava que o bosque estava conspirando contra mim.

Ou que os deuses, por fim, decidiram me castigar, mandando eu ir embora para minha casa. Nesses dias, eu desejava profundamente me aquecer. Mas era perigoso demais acender fogueiras.

Naquele dia, eu havia sonhado com um fio dourado, uma pedra carmesim de fogo, uma canção e ela me aquecia.

Eu seguia furtivamente o caminho. Conhecia os arredores da Primas One com a palma da minha mão. Mantinha-me seguramente afastada da estrada principal. Era o único caminho seguro o suficiente para as terras dos feéricos.

Ainda assim, com todo meu cuidado, a sensação de olhos atentos às minhas costas não se afastava de mim. Eu me apressava e despistava o que quer que estivesse à espreita. O que quer que estivesse me perseguindo. Mas tinha que admitir: dessa vez, ele — meu pai — havia mandado alguém mais esperto do que eu.

Espremi os olhos em um gesto de derrota.

Droga.

Eu dormia durante o dia, abrigando-me na caverna para ficar fora da vista, e ficava acordada à noite, ouvindo todos os sons. Segurando a faca de caça. Atenta a todos os barulhos da noite. Eu não cometeria os mesmos erros duas vezes.

Questionava-me se eu não tinha medo.

O medo era uma sombra constante, que seguia qualquer um que tivesse o mínimo de apego à vida. Mas eu não tinha tanto medo do bosque, tinha medo das pessoas que vagavam no bosque. Todo meu problema era estar machucada e não ser capaz de me defender da melhor forma possível. Quando o primeiro filete de sol apareceu no horizonte, eu me permiti recostar a cabeça na mochila e descansar.

*

Eu corria pela floresta.

Havia perdido a faca e o arco. A mochila era um peso morto nas minhas costas, cheia de todos as minhas roupas extras e utensílios.

A besta estava quebrada.

A madeira pendia partida nas minhas mãos.

Eles me perseguiam.

Vi-me encurralada na borda de um penhasco. Espiei pelo canto do olho, e tudo o que me separava deles era uma pequena faixa de terra e o abismo abaixo.

Buscando fugir, eu me joguei.

Na esperança de que o rio me salvasse. Mas eles não desistiam de mim, um deles também pulou, era aquele monstro da caverna.

— Me deixe em paz! — Eu gritei. Ele cravou suas garras nas minhas costas.

Pele e osso se rasgando.

Caímos no rio, que não era mais um rio, mas aquele maldito buraco, e fiquei presa ali dentro.

— Não, papai... não me deixe aqui sozinha — implorei.

Eu era um fracasso. A desonra da família. Ele me olhou de cima com ódio, enquanto fechava a tampa comigo dentro daquele espaço apertado.

Sem conseguir sair.

Sem conseguir respirar.

Sendo torturada.

*

Acordei sobressaltada, suada e tremendo, apalpando a terra em busca da faca para me defender. Mas era apenas mais um pesadelo. Era apenas mais um pesadelo. Minhas mãos tremeram. Eu havia saído. Havia fugido dali. Não voltaria mais para aquele lugar. Nunca mais!

Passei as mãos pelos cabelos respirando fundo.

A pior parte de estar sozinha era que a mente me torturava dia e noite, através do mundo dos sonhos. Onde não havia ninguém além de mim mesma.

Pela posição do sol, devia estar perto do meio-dia. Estiquei a mão para pegar o cantil. Uma onda de dor tomou conta do meu corpo, minha cabeça latejava com violência. Eu sentia frio, mas minhas roupas estavam ensopadas de suor. Sentei-me para inspecionar a ferida, e a visão não poderia ser pior. A pele estava vermelha, roxa e grudenta.

Abri o frasco do líquido transparente e despejei o resto do conteúdo em cima da lesão. Não senti tanta dor. Será que eu havia feito um preparo fraco? Diferente do que ela me ensinou? Era um sinal ruim. A ferida havia infeccionado. Eu não tinha mais ervas, nem suprimentos. Não conseguia andar mais rápido. Meus movimentos estavam comprometidos.

Abri o mapa e franzi a testa. Seria um perigo maior me afastar demais das margens do rio, não consegui voltar e ainda ficar sem água.

Encarei no mapa aquela distância curta até a barreira com impaciência. Se eu quisesse me curar, teria que visitar uma velha e tagarela amiga. Fiz o que eu não queria fazer. Levantei-me com dificuldade, afivelei a mochila, organizei as armas.

E segui para o portão mais próximo da barreira.


O Festim dos OssosOnde histórias criam vida. Descubra agora