Capítulo 4 - Legado de sangue e poder

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NO ALTO DO MONTE KAILASH, a atmosfera era implacável. Envolta pelo manto gélido da montanha, a cabana de Caihong Chen vibrava pela força dos ventos que a castigavam do lado de fora. O ar rarefeito cortava meus pulmões, tornando cada respiração um desafio. A temperatura beirava o congelamento, penetrando até mesmo a camada rija de minha pele imortal.

Nos três primeiros dias de minha estadia nos picos mais elevados e nevados do Tibete, a sensação térmica era a mesma que dormir dentro de um frigorífico. Pela janela, através do vidro grosso, via-se os cristais de gelo mordendo como agulhas afiadas a vegetação congelada. As rajadas caprichosas de vento faziam com que as árvores se curvassem contra a fúria da altitude extrema.

O céu, em tons de azul profundo, parecia tão próximo quanto inalcançável. As montanhas se estendiam como gigantes de pedra até onde a vista alcançava. Seus cumes perdiam-se entre nuvens que dançavam em coreografia etérea. Por causa das intempéries externas, Caihong Chen canalizou a sua magia oriental para criar uma barreira sutil contra os elementos. No entanto, nem mesmo os seus conhecimentos místicos podiam ignorar completamente a intensidade da altitude e do frio cruel.

Naqueles dias, enquanto me ensinava a usar uma pasta de ervas para que o meu combalido fator de cura agisse mais depressa na intenção de recuperar meus ferimentos, a mulher pequena quis saber um pouco mais a respeito da minha transformação em vampira. Contei resumidamente a minha história desde os campos de uva da Valáquia, passando pela minha fuga desesperada da fazenda de Grigore, até que eu caísse nas garras de Dumitri Ardelean, em Bucareste.

Relatei que, na época, eu não sabia nada sobre o envolvimento passado do malévolo sugador de sangue com a minha bisavó, Alanna. Tampouco que ele havia sido o responsável direto pela morte de minha avó, Arlene, e do desaparecimento de Ruxandra, a mulher que viria a ser a minha mãe.

A chinesa sentiu no ar todo o aborrecimento que aquele assunto ainda me causava. Estávamos sentadas em cadeiras de madeira diante da lareira, a bebericar outro de seus chás energéticos. Do lado de fora, o branco da neve atingia a janela com fúria.

— No dia em que Alanna contou a nós, os membros fiéis de seu conciliábulo, sobre o seu casamento com Nikulei Stratan, um modesto comerciante moldavo, após tantos anos dedicados única e exclusivamente à prática da magia, confesso que aquilo me foi uma grande surpresa.

Enquanto conversávamos, Xun, o gato-de-pallas, estava passeando pela neve do lado de fora, a fim de fazer as suas necessidades fisiológicas. O tínhamos perdido de vista a mais de trinta minutos, porém, aquilo não incomodava a sua dona.

— Nikulei sabia que ela era uma bruxa?

— Não — respondeu-me ela, sem pressa. — Estávamos em um período histórico em que a Igreja Católica e a Ortodoxa dominavam boa parte da Europa. Qualquer prática de magia, por mais inocente que pudesse parecer, era extremamente condenável. Quando Alanna retirou-se da convenção a fim de viver seus últimos anos como uma mulher comum, dona de casa e mãe, muitos de nós já haviam sido vitimados pela cruzada ferrenha anti-bruxaria iniciada pelos religiosos. Perdemos aliados queridos durante esses ataques. Minha boa amiga jamais revelaria ao marido que era alguém com mais de cem anos de idade e que só conseguira viver tanto às custas de práticas proibidas pela sociedade conservadora.

— Se ela era tão velha, como gerou uma criança saudável em seu ventre?

Aquela era uma indagação que servia tanto para elucidar o mistério do nascimento de minha avó quanto para saciar a curiosidade a respeito da minha própria fertilidade. Seria eu ainda capaz de conceber um bebê, como tão bem alegavam Costel, Dumitri e até mesmo Mason Grealish?

— Vejo em sua mente que há muitas questões ainda sem resposta sobre magia, Alina Grigorescu. Por conta das suas experiências vividas desde que deixou a Valáquia e, principalmente, pela maneira como fora tratada por pessoas como Adon Gorky e Iolanda Columbus, você tem resistência a acreditar que a magia possa ser praticada para o bem.

Alina e a Chave do InfinitoOnde histórias criam vida. Descubra agora